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Quando a dor da criança é colonizada, entre a teologia do sofrimento infantil e a crítica da razão infantil

Atualizado: 27 de mai.

Paola e eu escrevems o artigo Teologia do Sofrimento Infantil, publicado no site Prefiro Cuscuz, em que analiso como figuras como Michelle Bolsonaro e Damares Alves mobilizam símbolos religiosos para transformar a dor das crianças em um capital político-moral. O sofrimento infantil, nesse projeto, é sacralizado, instrumentalizado, performado. A criança aparece como um corpo puro e redentor, desde que calado, submisso e estetizado. Trata-se de uma infância convocada, não para dizer, mas para significar algo, pureza, fé, sacrifício, família.

Recentemente, ao assistir à conferência do professor Silvio Gallo, Para uma crítica da razão infantil, transmitida pela Unifesp, reconheci com espanto, e alívio, o quanto nossos campos de análise convergem, ainda que a partir de registros teóricos distintos. O que Gallo oferece é uma genealogia da infância enquanto conceito moderno de controle e exclusão, fundada na negação da razão e da fala às crianças. O que propomos, cada qual à sua maneira, é romper com esse lugar de tutela, de encenação, de ausência de escuta.

A infância é um conceito através do qual medimos nossas crianças”, diz Gallo, ecoando John Lennon.No meu texto, afirmo, “A criança, na estética bolsonarista, é útil enquanto dói, mas desde que não reclame.”

As frases não foram escritas para dialogar, mas se encontram no mesmo eixo de inquietação, o modo como a infância é moldada para caber num projeto de ordem. A infância, como observa Gallo, não é uma etapa biológica neutra. É um conceito, forjado historicamente, que define quem pode falar, pensar, decidir. E, mais importante, quem não pode.

No meu artigo, explorei como a dor infantil é liturgizada pela extrema direita cristã no Brasil. Gallo, por sua vez, mostra que a infância foi constituída na modernidade como o avesso da razão, a antítese da autonomia. Para ele, dizer “infante” é dizer “aquele que não fala”, e, portanto, que não pensa. É nessa negação de humanidade plena que se firma o governo dos corpos infantis.

Ambos os textos lidam com formas de colonização da infância. No plano político-religioso, essa colonização opera ao transformar o sofrimento em espetáculo e redenção. No plano filosófico-educacional, ela opera ao naturalizar a tutela e apagar a palavra da criança. Em comum, está a ideia de que a infância não é apenas silenciada, ela é produzida como silêncio.

Gallo diz, “Para descolonizar as crianças, é absolutamente necessário abandonar a infância.”Eu diria, para libertar as crianças, é preciso negar o uso moral que se faz delas como corpo simbólico a serviço do poder.

A radicalidade da proposta de Gallo não está apenas na crítica, mas na pergunta que ele propõe, é possível emancipar as crianças? É possível reconhecê-las como sujeitos de razão e de linguagem, e não apenas como potenciais adultos em formação? Ao escutar a palestra, pensei nas crianças-palco da política bolsonarista. Aquelas cujos nomes são citados em discursos sobre pedofilia, aborto ou “ideologia de gênero”, mas que nunca são ouvidas. São sempre as crianças, nunca essas crianças. Seus nomes, seus contextos, suas dores reais desaparecem sob a névoa da cruzada moral.

A proposta de Gallo não é fazer um elogio nostálgico da infância, como o fazem tantos discursos progressistas que romantizam a criança rebelde, criativa, espontânea. Tampouco se alinha à ideia de infância como reserva de futuro. Ele propõe, ao contrário, desativar o próprio conceito de infância, tal como se consolidou na modernidade, e com ele a cadeia de exclusões que carrega, da infância, da mulher, do negro, do indígena, do pobre.

Quando ele diz que “a criança é o último sujeito a não caber no ‘eu penso’ cartesiano”, ele está apontando para o ponto cego da razão ocidental.Quando digo que “o sofrimento infantil se tornou a prova mais eficaz de fé num Brasil desprovido de fé em políticas públicas”, estou denunciando o uso retórico da dor para fins inconfessáveis.

Nosso diálogo, portanto, não é apenas teórico. Ele é político, urgente, encarnado. Ele nos convida a deslocar o olhar, da infância como fase para a infância como invenção, da criança como ausência para a criança como sujeito.

A pergunta de Gallo, ao final da conferência, permanece, será possível abandonar a infância? Não como tempo da vida, mas como conceito colonizador? Talvez a pergunta que se articule à minha seja, será possível restituir às crianças o direito ao prazer, ao erro, à desobediência, sem que isso precise ser narrado como dor redentora?

Se a resposta for afirmativa, então, talvez, estejamos abrindo caminho para uma nova linguagem política, uma nova escuta, uma nova comunidade. Uma que trate as crianças, não como símbolo, mas como interlocutoras.

Agradeço ao meu amigo Rogério Matuck, educador e militante, pela indicação dessa conferência fundamental de seu ex-professor. Sem esse gesto generoso, talvez eu não tivesse me encontrado tão diretamente com essa pergunta que agora me atravessa e me reorganiza.



 
 
 

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