Teologia do sofrimento infantil: a infância na guerra cultural da extrema direita
- Sara Goes
- há 1 dia
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Por Sara Goes e Paola Jochimsen - Bastou Janja supostamente mencionar o TikTok em um jantar com Xi Jinping para que uma notícia sem fonte, contexto ou registro virasse caso de Estado. A fala, coerente com a agenda de soberania digital do governo, foi distorcida e transformada em “gafe” por colunistas ressentidos e redes bolsonaristas. O que Lula pode dizer como chefe de Estado, Janja não pode nem repetir como militante. Quando Michelle Bolsonaro usava a voz pública para invocar anjos e espalhar pânicos morais, era tratada com deferência. Quando Janja fala sobre regulação de plataformas, é tachada de inconveniente. A pauta era redes. O ataque, gênero.
Janja falou pensando em ações concretas para proteger crianças brasileiras, como a que morreu em um desafio do TikTok. Michelle, por sua vez, usava a infância como metáfora religiosa e combustível emocional, evocando pureza e sofrimento sem jamais propor políticas reais. Uma falava de algoritmos. A outra, de anjos. E, ainda assim, é a mulher que pensa e age politicamente quem vira alvo de patrulha.

Enquanto figuras como Eduardo Bolsonaro e Tarcísio de Freitas continuam girando na órbita do bolsonarismo original, sem conseguir formar um campo simbólico próprio, Michelle Bolsonaro e Damares Alves aprenderam a metabolizar o legado do ex-presidente e transformá-lo em capital político independente. Michelle, com sua estética de pureza e a retórica emocional voltada às “mães atípicas”, começa a ser ventilada como possível candidata à presidência em 2026, não mais apenas como “esposa de”, mas como figura pública que mobiliza afetos e devocionalidade. Damares, por sua vez, mesmo sob múltiplas denúncias, segue influente entre setores religiosos e parlamentares, mesmo após a explosão das revelações sobre o programa “Abrace o Marajó”, acusado de utilizar falsas denúncias de exploração sexual infantil para abrir caminho à grilagem de terras e à proliferação de igrejas evangélicas no arquipélago. Ambas ascenderam explorando o discurso do cuidado, mas não qualquer cuidado, e sim aquele que performa dor, que santifica o sofrimento infantil e o coloca a serviço de uma política messiânica que despreza direitos reais. São elas, e não os generais nem os filhos do clã, que hoje melhor representam o núcleo emocional da extrema direita brasileira.
O Brasil assistiu, no governo Bolsonaro, a consolidação de uma “teologia do sofrimento infantil”, travestida de política pública. Uma estética da pureza, da comoção e do espetáculo foi mobilizada para capturar afetos, justificar retrocessos e transformar crianças, sobretudo pobres, racializadas e com deficiência, em símbolos manipuláveis de uma guerra cultural. No centro dessa engrenagem moralista estão figuras como Michelle Bolsonaro, Damares Alves e Eduardo Girão (sem grande expressão política nacional, mas operando como tótem dessa teologia e cabo eleitoral de sua lógica), expoentes de uma dramaturgia messiânica em que o cuidado é encenado, a empatia é performática e o Estado serve menos para garantir direitos do que para promover controle social.
O zelo exagerado por fetos, o sentimentalismo calculado diante do autismo e a encenação religiosa do abuso sexual infantil não derivam do acaso. Eles seguem uma lógica precisa, em que a dor é estetizada, a infância é sacralizada e a política, reduzida a um grande teatro. Tudo que não se encaixa nesse modelo, sejam mulheres, meninas, mães reais é empurrado para o silêncio. A proteção invocada não é para elas, mas para a imagem que se projeta sobre elas.
Michelle e a pureza encenada

Em novembro de 2021, durante um evento natalino promovido pelo programa Pátria Voluntária, Michelle Bolsonaro vestiu-se de Branca de Neve para distribuir presentes a crianças em situação de vulnerabilidade. Entre adereços e sorrisos ensaiados, dirigiu-se às crianças com deficiência e no espectro autista como “anjinhos especiais”, acionando uma retórica caritativa e moralizante. A escolha de palavras não foi aleatória, resgata um imaginário paternalista do século XVIII, quando pessoas com deficiência eram tratadas dentro de uma lógica de comiseração e tutela. Ao chamá-las de “anjinhos”, Michelle reforça um enquadramento simbólico que infantiliza, romantiza e silencia. A deficiência, assim, deixa de ser uma questão de direitos para se tornar um traço angelical, passível de afeto, mas não de cidadania.
Por trás do verniz afetivo, essa linguagem limita. Parece acolhedora, mas opera como instrumento de contenção simbólica. Em vez de políticas públicas robustas, oferece consolo moral. Em vez de inclusão, oferece compaixão performática. É uma política que, como o botox, suaviza a superfície, apaga os sinais do tempo, e com eles a expressão. E sem expressão não há conflito, não há urgência, não há transformação.
O autismo torna-se socialmente aceitável desde que enquadrado em um molde simbólico que não exige mudanças estruturais, apenas empatia superficial. A mesma lógica que instrumentaliza o autismo para conquistar votos serve também para mobilizar segmentos sociais reunidos pela dor comum e pelo abandono histórico. É uma dinâmica profundamente exploratória, que desloca a deficiência do campo dos direitos para o da emoção manipulada. Ao lado de Michelle, Damares Alves, expoente da ala ultrafundamentalista, reforça esse discurso com termos como “anjinhos autistas”, que evocam caridade, mas ocultam a ausência de propostas concretas. Ambas encenam cuidado, enquanto patrocinam retrocessos.
Em 2020, Jair Bolsonaro assinou um decreto (Decreto nº 10.502, de 30 de setembro de 2020) que, sob a justificativa de promover inclusão, na prática incentivava a segregação de estudantes com deficiência. A proposta foi duramente criticada por especialistas, por ameaçar o direito à educação inclusiva. Dois anos depois, Bolsonaro vetaria integralmente o Projeto de Lei nº 1.361/2015 (PLC 23/2016), que garantiria direitos básicos a pessoas com deficiência auditiva unilateral, ignorando evidências técnicas e científicas. O veto seria derrubado em 2023, com a promulgação da Lei nº 14.768. A encenação afetiva, mais uma vez, escondia o desdém institucional.
Nada foi mais revelador, porém, do que o episódio em que Bolsonaro, diante de crianças educadas em um grupo de ensino domiciliar cristão, zombou de pessoas com deficiência física ao ridicularizar a ausência de um dedo do então ex-presidente Lula. A cena, que provocou risos entre adultos e crianças, expôs uma contradição gritante: cristãos que riem do escárnio, do ódio ao outro, ignorando o princípio elementar do amor ao próximo. Onde, afinal, está isso nos Evangelhos? Enquanto o discurso público se reveste de termos como ‘especial’ e ‘anjinho’, o tratamento real é de desumanização e desprezo.
Michelle Bolsonaro vem sendo construída como figura maternal, dócil, empática, uma espécie de “mãe da nação atípica”. Mas sua aparição como Branca de Neve, distribuindo presentes e palavras doces, ilustra uma retórica que, sob aparência de zelo, esvazia qualquer compromisso real com a inclusão. É uma performance cuidadosamente roteirizada, onde a estética suave, o sorriso controlado, com alguns mililitros de botox, compõem uma imagem de empatia imaculada, fabricada para emocionar, não para transformar.
É nesse contexto que se articula a chamada “indústria do autismo”, fenômeno que vai muito além de eventos natalinos. Baseada no uso estratégico da dor, essa indústria movimenta recursos públicos e privados, constrói frentes parlamentares e articula projetos de lei para ampliar visibilidade política, nem sempre para promover a inclusão, mas para consolidar poder. A pesquisa “A Indústria do Autismo no contexto brasileiro atual, contribuição ao debate”, de Fernandes, Couto, Andrada e Delgado, documenta esse processo entre 2019 e 2022. Os autores, sem viés partidário declarado, mostram como a pauta foi capturada pela extrema direita, tornando-se estratégica para sua base conservadora.
Com a derrota eleitoral de Bolsonaro, a estratégia não foi abandonada, apenas reconfigurada. A retórica emocional em torno das “mães de autistas” se consolidou em uma das armas mais eficazes da extrema direita na guerra híbrida em curso. Em vez de discutir políticas públicas com base em dados e realidade social, o debate é invadido por pânicos morais e indignações seletivas.
O episódio recente do pente-fino no Benefício de Prestação Continuada (BPC), foi exemplar. A medida, prevista em lei e adotada por diferentes governos, foi distorcida por influenciadores e parlamentares bolsonaristas como se fosse uma “perseguição” do governo Lula contra autistas. A manipulação afetiva foi instantânea. O fato jurídico foi soterrado por uma avalanche de comoção fabricada. A esquerda virou vilã, os fundamentalistas, heróis emocionais. Nessa dramaturgia, o cuidado vira slogan, e a dor, moeda.
Estamos diante de uma nova fase do marketing do autismo, agora plenamente inserido nas engrenagens da guerra informacional. A dor é convertida em ativo político. A urgência por cuidado transforma-se em palco de disputa. E o autismo, longe de ser tratado como parte da diversidade humana, volta a ser reduzido a um símbolo, rentável, mobilizador, politicamente lucrativo.
É nesse cenário que Michelle Bolsonaro reaparece, cuidadosamente remodelada. Em sua aparição recente na manifestação fracassada pela anistia, surgiu com o preenchimento facial já estabilizado. O inchaço visível semanas antes, na saída do hospital onde Jair Bolsonaro esteve internado, havia cedido, revelando um novo contorno. A mudança não está mais nos lábios, que perderam o volume exagerado, mas nas maçãs do rosto, que agora sustentam uma expressão mais suave, quase etérea. Michelle entende com precisão o lugar simbólico que ocupa e que deseja ocupar. Seu rosto, agora mais límpido, menos marcado, se adapta ao personagem que interpreta, a mãe da nação atípica, a santa laica do bolsonarismo em crise. Ela não apenas abandona a sensualidade, ela a oferece como sacrifício político. E assim como a compaixão que encena, seu novo rosto não reflete dor, mas a simulação delicada dela. Nenhuma ruga, nenhuma curva indesejada, nenhum traço de dissenso. É a política como filtro, o poder como pele esculpida, a maternidade como pureza litúrgica a serviço de uma cruzada emocional.
Eduardo Girão e o fetiche fetal

Em abril de 2023, o senador Eduardo Girão protagonizou um dos momentos mais ilustrativos da lógica simbólica da extrema direita brasileira. Durante uma audiência no Senado, tentou entregar uma réplica de um feto de 11 semanas ao ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida. O gesto foi recusado com firmeza pelo ministro, que classificou a ação como uma performance e uma exploração inaceitável de um problema gravíssimo. A cena, amplamente repercutida nas redes sociais, condensou em poucos segundos um padrão discursivo da extrema direita: a transformação de temas sensíveis em fetiches políticos, o uso do afeto como escudo moral e a conversão do Parlamento em palco de dramaturgia religiosa.
Girão afirmou ter entregue a réplica do feto a 80% dos senadores, em um gesto que ultrapassa o proselitismo e se aproxima do amuleto. O objeto, em sua materialidade grotesca, tenta conferir corporeidade a um argumento emocional, forçando a presença física de um símbolo que não admite contestação racional. O feto de plástico não é apenas instrumento retórico, é fetiche. Funciona como exibição ostensiva de pureza, como totem sagrado em meio ao debate público, interditando o contraditório e deslocando a discussão do campo jurídico e científico para o terreno do pânico moral.
Esse tipo de gesto performático não é isolado. Em 2024, Girão voltou à carga, promovendo sessões dramatizadas no Senado, com encenações e vídeos de fetos, para apoiar um projeto de lei que equipara o aborto após 22 semanas ao crime de homicídio. As audiências, marcadas por vozes monocórdicas e plateias previamente convertidas, ignoraram os dados sobre saúde pública, as complexidades da legislação brasileira e os casos extremos que compõem a realidade de quem enfrenta uma gravidez indesejada ou inviável. Ali, o objetivo não era legislar, era evangelizar.
Mas o feto de plástico de Girão é mais do que símbolo, é sintoma. Sintoma de uma política que se pretende messiânica, mas é estruturalmente cruel. Uma política que encena empatia, mas só reconhece como dignas de cuidado as vidas fetais e não as mulheres que morrem em abortos clandestinos, nem as meninas violentadas, nem as crianças já nascidas que vivem à margem. O feto de silicone é abraçado com fervor, enquanto a mulher concreta é empurrada para o silêncio, a vergonha e a clandestinidade.
Esse moralismo encenado, amplificado por figuras como Damares Alves e replicado por parlamentares da chamada bancada da vida, não tem compromisso com a complexidade. Ele se alimenta do escândalo, da lágrima forçada, do vídeo viral. E encontra em objetos como o feto de borracha, sua forma ideal: grotesca, simplificada, inquestionável. Um símbolo que dispensa políticas públicas, porque basta ser mostrado para comover, basta circular para convencer.
É o núcleo de um pânico moral cuidadosamente construído, que transforma angústias sociais legítimas em espetáculo e converte corpos em símbolos. Em vez de se debater políticas de saúde sexual e reprodutiva, financia-se uma dramaturgia do horror, na qual a emoção substitui o dado e o símbolo cala a mulher. Nessa engrenagem, o feto de plástico não é apenas instrumento, é o protagonista de uma liturgia política em que a vida é invocada, mas raramente protegida.
Ainda em 2020 temos o caso simbólico da menina de 10 anos, estuprada pelo tio e cujo aborto legal foi autorizado pela Justiça, é o exemplo mais brutal dessa lógica. Em vez de garantir segurança e acolhimento a uma criança vítima de violência, o que se viu foi uma operação coordenada para tentar impedir o procedimento, vazar informações sigilosas e transformar sofrimento em palco. Damares Alves, então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, foi apontada por reportagens como parte ativa desse processo, atuando para mobilizar redes religiosas contra o cumprimento de uma decisão judicial. A menina foi perseguida, transferida às pressas e teve sua história exposta como troféu em disputas morais que ignoram o trauma, o corpo e a infância. O cuidado que se invoca nunca é para ela, é para a ideia que se projeta sobre ela.
No fim, a pergunta que resta é menos sobre o objeto e mais sobre o teatro em que ele atua. A quem serve essa encenação? O que revela o zelo extremo por uma imagem fetal diante da completa negligência com corpos vivos e vulneráveis? A resposta talvez esteja no próprio fetiche: quanto mais plástico o cuidado, mais eficaz a manipulação.
Damares e o teatro da perversão

Lançado em março de 2020 com pompa, promessas e uma campanha emocional nas redes sociais, o programa “Abrace o Marajó” foi apresentado pela então ministra Damares Alves como uma grande cruzada civilizatória contra a exploração sexual infantil. Em vídeo promocional, Damares se autoproclamou “ministra do Marajó” e garantiu que seu ministério mobilizaria mais de R$ 3 bilhões em ações interministeriais para transformar a vida dos moradores da ilha, marcada por indicadores de pobreza, abandono estatal e ausência de políticas públicas estruturantes.
Na apresentação oficial, o governo dizia ter reunido mais de 100 ações em áreas como energia, educação, saúde, segurança e combate à fome. O plano previa desde a abertura de agências bancárias até a instalação de escolas agrícolas e a modernização de prefeituras, sob a justificativa de enfrentar supostos casos “alarmantes” de pedofilia, incesto e tráfico infantil no arquipélago. As denúncias, expostas em tom sensacionalista por Damares em cultos, entrevistas e vídeos nas redes, foram o estandarte da narrativa. Algumas incluíam alegações de estupro de recém-nascidos, tráfico de meninas para o exterior e mutilações corporais para facilitar abusos sexuais. Nenhuma dessas denúncias foi comprovada até hoje.
O Ministério Público Federal cobrou provas, não recebeu. Em vez disso, encontrou um projeto ineficaz, recheado de irregularidades e com forte presença de interesses alheios à garantia de direitos humanos. De 133 ações prometidas, apenas três foram parcialmente executadas, segundo auditoria da Controladoria-Geral da União. Obras de saneamento ficaram inacabadas, a prometida Casa da Mulher Brasileira nunca saiu do papel e os recursos federais evaporaram sem rastros confiáveis. Em paralelo, proliferavam templos evangélicos em comunidades ribeirinhas, muitos deles ligados a denominações com vínculos diretos com a então ministra, como a Igreja do Evangelho Quadrangular, liderada no Pará por seu tio, Josué Bengedstone.
A promessa de proteger meninas pobres virou vitrine para o avanço da grilagem, da influência religiosa e de grupos do agronegócio no Marajó. O comitê gestor do programa, ao contrário do que se esperaria em uma política pública voltada à proteção de populações vulneráveis, era formado por representantes da indústria e da agropecuária, sem qualquer participação efetiva de movimentos sociais, lideranças comunitárias ou mesmo do Incra. A ocupação da terra parecia mais estratégica do que qualquer iniciativa de cuidado com a infância.
Nas redes sociais, a narrativa se espalhou como pólvora. Vídeos com falas dramáticas da ex-ministra viralizaram. A Ilha do Marajó virou trending topic, cenário de horrores e alvo de memes. Crianças reais, famílias reais e comunidades inteiras passaram a ser vistas como personagens de um território “bárbaro”, que precisava ser domado por missionários e ministros. A Revista Cenarium chegou a alertar para o “efeito hype” do Marajó na internet, influenciadores, anônimos e até autoridades reproduziram essas fake news em massa, sem qualquer checagem. A dignidade das pessoas foi dilacerada em nome de curtidas, cliques e discursos messiânicos.
É nesse ponto que a crítica ganha outra camada, mais difícil, mas necessária. A repetição quase performática de imagens de violência sexual, narradas com riqueza de detalhes visuais e auditivos, sempre envolvidas em tom escandaloso e carregadas de teatralidade, levanta uma suspeita incômoda: por que uma autoridade pública, supostamente encarregada de proteger crianças, parece extrair prazer discursivo da exposição minuciosa de seus sofrimentos? As falas de Damares, muitas vezes evocando descrições dignas de fóruns obscuros da internet dos anos 2000, soam menos como denúncia e mais como encenação. Há um fascínio retórico evidente na forma como ela conduz a narrativa, e isso não pode ser ignorado. Quando a política pública se associa sistematicamente a cenas de abuso infantil, em tom quase ficcional, é necessário perguntar, o que se busca com esse tipo de imaginação pública? A obsessão da ministra das goiabeiras por temas sexuais envolvendo crianças ultrapassa a denúncia e se aproxima de um teatro doentio de purificação moral, onde a exposição simbólica do mal serve mais para excitar afetos do que para formular respostas concretas. O Brasil precisa tratar isso com a seriedade que exige, não como escândalo, mas como sintoma.
Como observa Jason Stanley em “Como funciona o fascismo: A política do “nós e eles”, regimes autoritários não operam apenas pelo controle da força, mas sobretudo pela construção de narrativas morais infladas de emoção e desprovidas de compromisso com a complexidade. O fascismo, segundo ele, “se apoia em fantasias de pureza e nostalgia de uma ordem moral perdida”, utilizando símbolos carregados de afeto para interditar o debate racional e justificar políticas de controle. Nesse sentido, o uso sistemático do sofrimento infantil como peça de propaganda e o fetichismo em torno do feto — seja de plástico ou de discurso, não são desvios retóricos isolados, mas engrenagens de uma estratégia. Trata-se de transformar angústias legítimas em espetáculo, interditar a crítica sob o pretexto de proteção e mobilizar afetos em vez de políticas públicas. A política da pureza moral, tão central ao fascismo descrito por Stanley, ganha aqui contornos religiosos e midiáticos, com forte apelo emocional e baixa tolerância à contestação.
Ao transformar sofrimento em espetáculo, o governo federal fez do Marajó um laboratório de guerra cultural, a infância como escudo, a religião como trincheira, o desmonte do Estado como estratégia. A dor alheia foi sequestrada para justificar projetos que pouco ou nada tinham a ver com cuidado, e muito com ocupação política, simbólica e territorial. O resultado foi devastador, nenhuma política pública estruturada, nenhum sistema de proteção consolidado, apenas ruínas e igrejas em pé.
Hoje, o MPF cobra uma indenização de R$ 5 milhões à União e à senadora Damares Alves por danos morais coletivos à população marajoara. Mas o estrago vai além do orçamento, está na imagem do território, na criminalização cultural de um povo e no precedente perigoso de se usar o discurso de proteção à infância como justificativa para qualquer coisa, até para a mentira.
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