Brasil, país dos medalhões: opiniões fortes, ideias fracas
- Paola Jochimsen
- 9 de mai.
- 5 min de leitura
O brasileiro médio do século XXI parece ter uma especialidade: falar com convicção sobre o que não entende. Opina sobre tudo com a confiança de um prêmio Nobel — mesmo quando mal leu a manchete. Essa figura tão familiar, que desfila certezas ocas e frases feitas, já foi retratada com precisão cirúrgica por Machado de Assis… em 1881.

Naquele ano, Machado publicou na Gazeta de Notícias o conto Teoria do Medalhão. Nele, um pai chama seu filho, Janjão, na noite em que completa 21 anos, e lhe dá conselhos sobre como se tornar alguém importante na sociedade. A conversa começa séria, mas logo mergulha num absurdo bem-vestido de sabedoria. “Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas ideias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente.”
Na teoria paterna, pensar é perigoso. Ter ideias, arriscado. E o sucesso social está em parecer profundo, basta falar exatamente o que querem ouvir. O tal Janjão é um arquétipo eterno e sua transformação no “medalhão perfeito” é assustadoramente atual. Na construção do medalhão, não bastava apenas parecer sábio; era preciso também ter os acessórios certos: um diploma, algum patrimônio e a retórica ensaiada da respeitabilidade. Na época, o pai dizia que Janjão já possuía tudo o que precisava:
“Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti. Vinte e um anos, meu rapaz, formam apenas a primeira sílaba do nosso destino. Os mesmos Pitt e Napoleão, apesar de precoces, não foram tudo aos vinte e um anos. Mas qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante.”.
As “apólices” eram títulos da dívida pública emitidos pelo Império — rendiam juros. Ou seja, garantiam uma vida confortável sem precisar trabalhar. O diploma completava o pacote: status e aparência de saber. E só. Hoje, o jovem brasileiro também tem “apólices” — mas de outro tipo: dívidas. Em vez de receber juros do governo, ele começa a vida adulta devendo ao FIES, aos bancos, às fintechs, ao cartão de crédito e ao aluguel. O diploma, longe de ser passaporte para a elite, virou um papel parcelado em 48 vezes, mais simbólico que eficaz. Mas o espírito do medalhão sobrevive: o importante é parecer. Parecer que sabe, parecer que leu, parecer que entende. A pose continua valendo mais do que o conteúdo.
O pai de Janjão, com seu tom professoral, valoriza a “inópia mental”. Uma expressão que deveria ser hashtag nas redes sociais.
“Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício.”
A inópia mental não é a ausência inocente de saber, é a ausência estratégica, a ignorância instrumentalizada como método de sobrevivência social. Um cérebro vazio, mas um discurso cheio de palavras alinhadas. Não é preciso saber, basta repetir o que ouviu numa esquina, ou hoje, no feed. O importante é dizer com firmeza e cara de quem foi à fonte (mesmo que a fonte seja um TikTok com trilha de saxofone e dancinha reflexiva).
A figura do medalhão migrou das rodas de chá do século XIX para os grupos de WhatsApp e podcasts. Hoje ele tem microfone, fone gamer, perfil verificado e pauta para cada assunto: guerra no Oriente Médio, vacina contra Covid-19, mudança climática, juros do FED, Big Brother Brasil, o show da Lady Gaga no Brasil, o conclave para a escolha do novo papa, a taxação das “brusinhas” da Shein. O leque de possibilidades é enorme — basta saber o tema do momento. São os especialistas de ocasião, que pulam de tema em tema com a confiança de quem já deu aula em Harvard ou, ao menos, assistiu um Reels com alguém que disse que deu.
Instituições como a mídia, a política e até a escola contribuíram para a ascensão do medalhão. A educação que estimula o decoreba em vez do pensamento crítico, o jornalismo que caça a polêmica em vez da profundidade, os debates políticos de TV cronometrados e cheios de frases de efeito: tudo isso fabrica medalhões em série. Gente treinada para vencer pela aparência, não pelo neurônio.
O medalhão digital: entre fake news e discursos vazios

O pai de Janjão orienta: “As ideias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofreemos, elas irrompem e precipitam-se.” Ou seja: cuidado! Pensar pode ser um risco. E ele alerta: “Urge aparelhar fortemente o espírito”, isto é, treinar-se para jamais deixar escapar uma ideia própria. No Brasil de 2025, conseguimos esse feito com louvor. Criamos uma geração que, com algum treino de selfie e frases prontas, se torna autoridade instantânea. A ignorância de banho tomado, perfumada e pronta para viralizar.
Nesse novo cenário, as fake news são o combustível do medalhão moderno. Não apenas desinformado, mas agora desinformador ativo. Ele não apenas acredita — ele compartilha. Não apenas compartilha — ele comenta, afirma, defende, briga, milita em cima da mentira. E tudo com ar de grandeza. É o medalhão digital, falando com autoridade sobre uma notícia falsa que começa com: “Isso aí ninguém te mostra, mas um amigo meu, que entende, confirmou…”
Na política, o medalhão também brilha. O pai ensina: “Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma ideia especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhes somente a utilidade do scibboleth bíblico.” A recomendação continua atual. O importante não é a coerência, mas a presença. E se der para discursar, melhor ainda, desde que o conteúdo seja vago, rebuscado e metafísico. Não é preciso governar bem. Basta estar lá, de terno escuro, ar sério e discurso cheio de adjetivo.
Mas o pai avisa: há limites. “Somente não deves empregar a ironia […] Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca.” A ironia, esse recurso dos céticos, é perigosa, pois convida à dúvida. Melhor rir da piada fácil, da gafe, do meme e manter as estruturas firmes. Rir com inteligência pode ser revolucionário demais.
E aí está o Brasil: um desfile de medalhões sorridentes, bem-postos, vazios, disfarçados de sábios. Influencers da ignorância, deputados da retórica vazia, especialistas da verdade absoluta baseada em vídeos de três minutos. Uma pátria que idolatra quem parece saber, mas desconfia de quem realmente estuda, reflete, duvida.
Machado escreveu Teoria do Medalhão como sátira, mas também como espelho. E talvez a pergunta mais desconfortável seja: quem nunca foi um medalhão, que poste o primeiro comentário? Quantas vezes preferimos a pose à dúvida, a frase de efeito à escuta, o comentário rápido à leitura profunda? Quantas vezes fomos treinados para fingir saber, quando deveríamos ter aprendido a perguntar?
Pensar, no Brasil, é quase um ato subversivo. E talvez por isso mesmo seja tão necessário.
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