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Quem carrega a cruz na guerra híbrida

Eu me considero uma ateia mariana. Não acredito em dogmas nem em divindades, mas carrego, com ternura e inquietação, o nome e o mito de Maria. Sou fruto de uma linhagem ateia que remonta à minha bisavó, comunistas que se rebelaram contra a religião imposta e contra a moral católica que as cercava como arame farpado. E, ainda assim, quando escuto a história de homens como Dom Helder, Leonardo Boff, padre Júlio Lancellotti, Lino Allegri, frei Tito e também o controverso padre Cícero, não consigo escapar de uma evidência: todos nasceram de um ventre popular que transformou o sagrado em pão e resistência.

É a partir dessa contradição, fértil e política, que inicio este texto. Falar da fé perseguida no Brasil é falar da maternidade do espírito, essa que acolhe mas também se insurge, que educa mas também desobedece. Os padres aqui retratados não foram perseguidos por desobedecerem a ritos. Foram perseguidos porque ousaram transformar o altar em trincheira e o Evangelho em prática subversiva. No fundo, todos carregavam no peito alguma Maria, seja a do rosário, a da Palestina, a das dores ou a de Juazeiro.

Cresci entre militantes ateus, e foi nesse ambiente que aprendi que a religião no Brasil é também um território de disputa simbólica e política. O exílio de tantos religiosos não se deu apenas nas prisões ou nos tribunais. Se materializou também nas homilias censuradas e nas campanhas difamatórias, formas precoces da guerra híbrida que hoje associamos a algoritmos, mas que já existiam sob outras máscaras.

Este texto, portanto, é escrito com a reverência de quem não crê, mas reconhece que a fé, quando se alia à justiça, move montanhas. Não falo em nome da religião. Falo ao lado dela, com a mão pousada sobre o ombro de cada um que foi desautorizado por uma doutrina que esqueceu suas próprias raízes. Maria nunca foi uma dama da corte, foi uma mulher pobre, grávida, foragida, sem teto, que entoou um cântico de revolta social: derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes (Lucas 1:52).

Todos os perseguidos que aqui trago foram, de algum modo, filhos de Marias. Este artigo é a tentativa de ouvi-los com o silêncio que ela guardava no peito e com a coragem que tantos tentaram desmoralizar. Porque a fé popular, a fé que protege os pobres e desafia as autoridades, é sempre o primeiro alvo. No Brasil, nenhuma guerra começa sem antes tentar calar uma Maria.


Finalmente o Papa:  Leão XIV

De missionário em Chiclayo a papa do mundo, Robert Francis Prevost enfrentou não apenas a pobreza e o abandono, mas também as engrenagens sutis de uma guerra que mistura fé, poder e algoritmos

Em tempos de guerra híbrida, até a santidade se torna alvo. A escolha de Robert Francis Prevost como Papa Leão XIV surpreendeu parte da opinião pública mundial, mas para quem acompanha a trajetória da Igreja latino-americana, não se trata de um gesto isolado. Antes de vestir o branco pontifício, Prevost calçou as sandálias do missionário. Viveu mais de duas décadas no norte do Peru, em uma região marcada pela desigualdade social, pela corrupção entranhada e pelo conservadorismo clerical.

Foi em Chiclayo, como bispo, que Prevost começou a experimentar os efeitos concretos dessa nova configuração de conflito, um campo de disputa que combina desinformação e sabotagem institucional, mediado por operações psicológicas que moldam percepções e corrompem o debate público. A partir de seu compromisso com os pobres, passou a ser alvo de campanhas difamatórias articuladas com precisão, não por escândalos reais, mas por ousar afirmar que a fé não pode compactuar com o silêncio diante do sofrimento. O novo papa é, acima de tudo, sobrevivente de uma guerra que não se trava com tanques, mas com narrativas editadas, dados extraídos sem consentimento e algoritmos a serviço de interesses subterrâneos.

Grande parte dessa guerra tinha rosto e método. O Sodalitium Christianae Vitae, fundado em Lima nos anos 1970 por Luis Fernando Figari, se apresentava como movimento de renovação espiritual. Na prática, constituiu-se em uma organização ultraconservadora com dinâmica de seita e traços paramilitares, marcada por abusos, manipulação emocional e captura de comportamentos pela via algorítmica. Os alvos preferenciais eram jovens oriundos de camadas populares, recrutados em uma operação psicopolítica que transforma o controle em convicção íntima.

Enquanto setores da hierarquia eclesiástica se acomodavam à omissão, Prevost tomou outro caminho. Apoiou vítimas, pressionou por investigações internas e defendeu medidas de reparação em reuniões da Conferência Episcopal. Sua postura firme rompeu o pacto de silêncio e o transformou em ameaça para uma elite clerical bem relacionada, que contava com respaldo midiático e empresarial e mantinha interlocução com setores estratégicos do Vaticano. As acusações vieram em bloco: simpatia pela Teologia da Libertação, ideologização da fé, radicalismo pastoral. Seus discursos passaram a ser editados e distorcidos em práticas que antecipam o que, no direito, se convencionou chamar de lawfare.

A resistência de Prevost não se limitou às fronteiras da Igreja. Suas denúncias sobre conluios entre narcotráfico, polícias locais e autoridades políticas no norte peruano desestabilizaram interesses sistêmicos. O ataque contra ele se sofisticou. Emissoras comunitárias cooptadas insinuavam sua “interferência política”, enquanto redes digitais, alimentadas por perfis automatizados, amplificavam as difamações. Era a engrenagem da guerra híbrida operando com precisão, cruzando psicopolítica e deslegitimação pública para neutralizar sua autoridade moral.

Em abril de 2025, o Vaticano suprimiu formalmente o Sodalitium. Para Prevost, no entanto, o combate já tinha deixado marcas definitivas. Enfrentou uma arquitetura transnacional de poder, onde fé, mercado e controle informacional se entrelaçam de maneira invisível, mas devastadora. Sua escolha para suceder Francisco transcende o campo espiritual. Ela é também um movimento estratégico no tabuleiro da geopolítica contemporânea.

Leão XIV assume o trono de Pedro em um tempo em que a fé deixou de ser apenas uma questão de credo para se tornar também uma batalha pela soberania comunicacional. Ele conhece a engrenagem que cancela resistências, que esvazia mobilizações e que transforma plataformas digitais em instrumentos de manipulação emocional. Sabe que os novos vendilhões do templo já não ficam mais às portas das igrejas, mas se instalam nos servidores de onde se governa, silenciosamente, a nova ordem global.

Se existe um pontífice preparado para conduzir a Igreja entre o cerco da dominação simbólica e as armadilhas do colonialismo digital, é aquele que aprendeu, no sertão de Chiclayo, que o Evangelho pode ser calado não apenas pela perseguição aberta, mas também por filtros algorítmicos, campanhas de difamação e fabricação industrial de pânico moral.



2. Cruz e contra-informação: os cancelados da fé no Brasil

Símbolo se disputa e a guerra híbrida sabe disso. No Brasil, a Igreja Católica tornou-se alvo recorrente de campanhas de desinformação, ataques organizados e perseguições sistemáticas. Utilizando técnicas de guerra psicológica, o poder se voltou contra figuras que ousaram praticar o Evangelho como denúncia da injustiça. São lideranças que viveram, e vivem, sob o peso da psicopolítica, da manipulação afetiva e da deslegitimação coordenada, o cancelamento.


2.1 Dom Helder Câmara

Dom Helder Câmara ousou ser luz em plena ditadura militar, num país afogado em censura e tortura. Seminarista em Fortaleza, arcebispo de Olinda e Recife de 1964 a 1985, tornou-se símbolo internacional da resistência cristã à opressão. Dom Helder foi um dos primeiros alvos de uma engenharia de difamação que combinava vigilância estatal, manipulação midiática e sabotagem institucional, um ensaio para o que mais tarde se chamaria guerra híbrida.

Chamado de bispo vermelho por generais e empresários, acusado de comunista pela grande imprensa e monitorado pelo SNI, ele enfrentou uma operação contínua de isolamento simbólico. No contexto da ditadura, sua atuação junto às comunidades eclesiais de base e sua denúncia da miséria nordestina eram tratadas como subversão. Seu nome foi suprimido dos jornais, sua voz censurada nos púlpitos oficiais e suas cartas pastorais tachadas de ameaça à ordem nacional.

Um documento secreto do governo paulista, datado de 1970, chegou a acusá-lo de atuar a serviço de Moscou e Havana, sem apresentar provas. A difamação não se limitava à retórica anticomunista, buscava corroer sua credibilidade junto aos fiéis e à opinião pública internacional. O objetivo era quebrar o vínculo entre Dom Helder e o povo, substituindo a imagem do pastor pelo fantasma da ameaça.

Ao lado de Paulo Freire, Dom Helder entendia a fé como prática concreta, o que o tornava insuportável aos donos do poder. Atuava em articulação com bispos latino-americanos, principalmente no CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano), e foi um dos primeiros a formular, ainda nos anos 1950, uma teologia do desenvolvimento voltada para a justiça social. Sua posição o expôs não apenas à perseguição militar, mas também à resistência de setores da própria Igreja Católica, que preferiam uma religiosidade obediente e despolitizada.

Em 1968, após o AI-5, passou a ser monitorado em tempo integral. A partir de 1971, seu nome foi proibido nos veículos de comunicação, prática que os censores chamavam de interdição simbólica. Sua presença pública foi sendo apagada dentro do país, mesmo quando recebia prêmios internacionais. A estratégia de silenciamento era mais eficaz que a repressão direta: destituía o sujeito de seu papel simbólico enquanto preservava a aparência de normalidade institucional.

Além da censura, Dom Helder foi alvo de guerra psicológica. Recebeu ameaças de morte, sofreu tentativas de invasão em sua residência e viu dossiês apócrifos circularem entre bispos conservadores e diplomatas. Em 1969, o assassinato do padre Antônio Henrique Pereira Neto, seu auxiliar na Pastoral da Juventude, deixou claro que ninguém estaria protegido se cruzasse os limites impostos pela repressão.

Mesmo diante desse cerco, Dom Helder não recuou. Seu discurso era também um gesto de educação política: ensinava a desobediência moral diante da injustiça. Desmontava a retórica militarista com uma clareza serena, fundada na experiência do Evangelho. Por isso, seu legado continua perigoso para o status quo: mostra que a fé pode ser instrumento de insubordinação e resistência narrativa.

No século XXI, Dom Helder é redescoberto como símbolo de uma resistência afetiva. Não mobilizava pela fúria, mas pela compaixão ativa. Sua luta não operava em redes digitais ou campanhas, mas nas cartas trocadas, nas homilias persistentes, nas visitas silenciosas. Se vivesse hoje, provavelmente seria atacado por campanhas de desinformação, memes infames e manipulações digitais. Sua memória, no entanto, sobrevive a todas as tentativas de apagamento.



2.2 Leonardo Boff

Leonardo Boff é, até hoje, um dos nomes mais potentes da teologia latino-americana. Frade franciscano, intelectual de formação rigorosa e militante da justiça social, sua trajetória não pode ser compreendida sem considerar os dispositivos de repressão simbólica e disciplinar que enfrentou, tanto na cúria romana quanto nas elites brasileiras. Boff foi uma das vozes centrais da teologia da libertação e, por isso mesmo, tornou-se alvo exemplar daquilo que hoje reconhecemos como lawfare doutrinário e guerra híbrida religiosa.

Seu livro Igreja: Carisma e Poder, publicado em 1981, questionava a estrutura verticalizada da Igreja Católica e propunha uma organização mais aberta ao protagonismo das comunidades de base. A recepção foi explosiva. Fiéis comprometidos com as causas populares viram ali um caminho de emancipação, enquanto setores da cúria romana enxergaram uma ameaça direta à autoridade eclesial.

A resposta veio três anos depois, com a convocação de Boff pela Congregação para a Doutrina da Fé, então liderada por Joseph Ratzinger, o futuro Papa Bento XVI. Em 1985, ele foi punido com o "silêncio obsequioso", uma sanção que o impedia de escrever, lecionar ou conceder entrevistas sobre temas religiosos. Não era apenas uma censura, mas uma tentativa de asfixia intelectual disfarçada de disciplina eclesial.

Boff também foi alvo de campanhas de deslegitimação articuladas por grupos conservadores e repercutidas na grande imprensa. Era retratado como radical, agente infiltrado, agitador mascarado de religioso. Não atacavam apenas suas ideias, mas sua legitimidade, numa operação de desmonte da credibilidade pessoal — o método da guerra híbrida aplicado ao campo espiritual, muito antes da popularização dos algoritmos.

Mais do que silenciá-lo, o objetivo era torná-lo irrelevante. O debate sobre justiça social foi diluído em rótulos, deslocado para o terreno do moralismo e da opinião despolitizada, criando a ilusão de neutralidade onde havia repressão de pensamento.

Na década de 1990, diante da ameaça de novas punições por sua intenção de participar da ECO-92, Boff decidiu deixar o sacerdócio e a Ordem Franciscana. Não abandonou a fé, mas rompeu com as amarras institucionais que, sob a fachada de proteção doutrinária, operavam como mecanismos de supressão epistêmica. Sua saída foi um gesto de autonomia espiritual e de afirmação intelectual. Foi também um alerta: a Igreja, mesmo em seu interior, abriga dispositivos de controle informacional e disciplinamento narrativo.

Boff seguiu produzindo, renovando suas reflexões sobre ética, ecologia, espiritualidade e direitos humanos. Incorporando a mística franciscana com a cosmologia dos povos indígenas e o pensamento crítico, ele tornou-se uma referência na construção da eco-teologia e do movimento pelo bem-viver. Seu trabalho confronta tanto o extrativismo teológico que desumaniza quanto as novas formas de colonialismo disfarçado em universalismos abstratos.

Sua trajetória mostra que a psicopolítica repressiva não atua apenas para silenciar. Opera também para desarticular redes de significação, enfraquecer comunidades de resistência e separar fé de transformação social. Ao punir Boff, o ataque não se dirigiu apenas a um indivíduo, mas ao fluxo coletivo de pensamento que ele encarnava.

Ainda assim, não conseguiram estancar essa corrente. Leonardo Boff, como Dom Helder Câmara, permanece como exemplo de uma fé pública que recusa a domesticação, que incomoda não pelo gesto de crer, mas pelo ato de pensar e agir contra a injustiça.



2.3 Padre Júlio Lancellotti

Na paisagem cada vez mais brutalizada das grandes cidades brasileiras, poucos corpos se tornaram tão emblemáticos quanto o de padre Júlio Lancellotti. Frágil, com o andar compassado e a batina suja de chão, ele encarna a presença incômoda de uma Igreja que opta pelos rejeitados, e por isso se tornou um dos principais alvos da guerra híbrida contemporânea no Brasil.

Coordenador da Pastoral do Povo de Rua em São Paulo, Júlio desafia a política do abandono e a psicopolítica da crueldade, que transforma sofrimento em culpa e a exclusão em paisagem naturalizada. Diante do projeto higienista que criminaliza a pobreza e mascara a segregação sob discursos de urbanismo, ele responde com o gesto escandaloso da ternura. A imagem do padre, marreta nas mãos, destruindo em 2021 as muretas de pedra erguidas sob viadutos para impedir pessoas em situação de rua de se deitarem, viralizou. Mais do que um protesto, foi um ato de liturgia e de resistência pastoral.

No Brasil da captura algorítmica, imagens como essa são rapidamente distorcidas. Padre Júlio passou a ser alvo da extrema direita, que mobilizou contra ele uma campanha sistemática de difamação. Memes ofensivos, ameaças, vídeos manipulados e denúncias falsas se multiplicaram. Numa das operações mais insidiosas da guerra híbrida moral, seus detratores ressuscitaram e adaptaram uma velha tática: a falsa acusação de pedofilia.

Sem qualquer evidência, essa calúnia passou a ser disseminada em redes e grupos extremistas. Acusar um padre desse crime, num contexto de trauma coletivo relacionado a abusos eclesiásticos, é provocar repulsa instantânea, numa estratégia de inversão afetiva em que o agente do cuidado é reconstruído como ameaça.

Trata-se de um mecanismo conhecido da psicopolítica punitiva: não basta tentar silenciar, é preciso quebrar o símbolo. A intenção é corroer a autoridade moral de quem constrói vínculos reais com o sofrimento. As falsas acusações funcionam como vírus morais, pois não precisam de provas, apenas de disseminação. A dúvida, uma vez lançada, já cumpre seu trabalho de desgaste.

A esses ataques, padre Júlio jamais respondeu com ódio. Continuou distribuindo sopa e acolhimento, processando juridicamente os agressores que ultrapassaram os limites. Em 2022, após ser chamado de "bandido disfarçado de padre" por Luciano Hang num grupo empresarial que defendia um golpe militar, processou e venceu. Sabe, porém, que a perseguição não é episódica. Ela é parte de uma engrenagem de desinformação que visa deslegitimar qualquer experiência de amor politicamente insurgente.

Num país onde a necropolítica organiza a indiferença e o corpo pobre é tratado como resíduo, a presença persistente de padre Júlio é um escândalo. Sua prática confronta diretamente a lógica da invisibilidade e recusa os algoritmos do ódio, afirmando, com o peso dos gestos diários, a pastoral da presença.


2.4 Padres Lino e Ermanno Allegri


Em uma missa numa paróquia da zona nobre da capital cearense, um padre octogenário interrompeu a liturgia para rezar pelas mais de 500 mil vidas perdidas pela pandemia da COVID-19. Em voz trêmula, lamentou a omissão do governo federal diante da tragédia em curso. O gesto tão simples quanto evangélico desencadeou uma guerra em Fortaleza.

Padre Lino Allegri, sacerdote italiano com décadas de missão no Brasil, foi transformado em alvo preferencial da extrema direita local. Fiéis bolsonaristas infiltrados no templo o interromperam aos gritos e disseminaram os vídeos em redes sociais com a legenda: “padre comunista usa missa para atacar Bolsonaro”. Estava dada a largada para uma operação de guerra híbrida dentro do próprio altar.

A estratégia é conhecida: recortar, distorcer, viralizar. Aplicar uma espécie de antecipação manipulada que condiciona o público a rejeitar a mensagem antes mesmo de ouvi-la integralmente. O discurso de Allegri foi reduzido a uma caricatura e a missa em um “ato político” subversivo. O que era um lamento cristão virou, aos olhos da bolha bolsonarista alencarina, heresia marxista. Grupos organizados passaram a difamar o padre, pressionar a Arquidiocese, enviar denúncias fantasiosas ao Ministério Público e, por fim, forçá-lo a se afastar temporariamente das atividades religiosas. A campanha foi alimentada por páginas de desinformação e jornalistas alinhados à extrema direita. Era o algoritmo operando sobre a fé.

A situação chamou a atenção de autoridades civis e religiosas. O então governador do Ceará, Camilo Santana, determinou a abertura de um inquérito para investigar as ameaças. Mas a violência já estava feita. O episódio revelou com clareza a nova arena da guerra híbrida no Brasil: o espaço litúrgico, antes protegido pelo silêncio respeitoso da fé, tornou-se trincheira de disputa moral e cognitiva.

Diante das ameaças, padre Lino passou a ser escoltado por apoiadores vindos de diversas origens: católicos progressistas, evangélicos dissonantes, praticantes de religiões de matriz africana, agnósticos, e ateus como minha mãe que sempre soube reconhecer quando a cruz deixava de ser símbolo de dominação. Foi ela uma das que se dispuseram a proteger o corpo do padre. Não em nome da fé, mas da justiça. Não por devoção, mas por compromisso com o que é certo. Estava disposta a bater e a apanhar, se preciso fosse, porque reconhecia naquela figura ameaçada um ponto de inflexão: ou se lutava por ele, ou se aceitava calada a rendição da compaixão ao fascismo cotidiano.

Lino não está só. Seu irmão, Padre Ermanno Allegri, também missionário italiano e militante das causas populares, vive há décadas em Fortaleza, onde atua com firmeza em defesa dos direitos humanos, da justiça social e da democratização da comunicação. Fundador da agência Adital e colaborador de pastorais sociais, Ermanno é símbolo de uma “Igreja em saída” – aquela que, como deseja o Papa Francisco, deixa os templos e vai ao encontro dos marginalizados, das periferias geográficas e existenciais.

Ambos fazem parte do Movimento Igreja em Saída, que celebra missas em espaços públicos e transforma a liturgia em ferramenta de diálogo com o mundo real. Missas no Parque Rio Branco, por exemplo, viraram assembleias da fé com pauta ecológica, política e humanitária. A cruz, nesses encontros, não é cetro de poder – é ponte entre os que sofrem e os que resistem. É fé viva, desarmada, e por isso perigosa aos olhos de quem deseja uma religião cúmplice do autoritarismo.

O caso dos irmãos Allegri revela como a guerra híbrida atua de dentro das igrejas, como a desinformação pode colonizar até mesmo a missa, e como o afeto evangélico tornou-se alvo da racionalidade punitiva. Mas também mostra que a resistência mora onde menos se espera: no corpo cansado de um padre de 82 anos, que transforma o púlpito em trincheira – e no de outro, seu irmão de caminhada, que faz da comunicação e da presença pastoral uma insurgência silenciosa.


2.5 Frei Tito de Alencar

A história de frei Tito de Alencar é talvez a mais dilacerante e radical entre os religiosos perseguidos pela ditadura militar brasileira. Frade dominicano nascido em Fortaleza, estudante da Faculdade de Filosofia da USP e militante do movimento estudantil, Tito tornou-se o alvo exemplar de uma das mais cruéis operações de guerra psicológica já aplicadas contra um membro da Igreja Católica no Brasil. A repressão não queria apenas silenciá-lo — queria destruir sua psique. E quase conseguiu.

Tito foi preso em 1969 pelo DOPS, acusado de ligação com a Ação Libertadora Nacional (ALN), organização revolucionária dirigida por Carlos Marighella. À época, estava vinculado ao grupo dos frades dominicanos que ofereciam apoio logístico à resistência armada. A prisão se deu com estardalhaço, e ele foi imediatamente levado à OBAN (Operação Bandeirantes), embrião do DOI-CODI. Lá, foi submetido a sessões diárias de espancamentos, choques elétricos, palmatória, afogamentos, simulações de fuzilamento e um tipo específico de tortura que visava a humilhação espiritual: Tito era obrigado a ajoelhar-se e rezar sob insultos e golpes.

A repressão usou o corpo de Tito como campo de experimentação de um regime de controle que não visava apenas informação, mas desintegração simbólica. A fé do frade era considerada um problema porque lhe dava estrutura interior para resistir. Por isso, o objetivo era inverter a fé em culpa, a devoção em delírio, a esperança em desespero. O ataque não era apenas físico: era ontológico.

Em 1971, Tito foi libertado como parte do acordo para a soltura do embaixador suíço, sequestrado pela Vanguarda Popular Revolucionária. Exilado em Roma e depois na França, tentou reconstruir sua vida. Mas os traumas persistiram. Sofria de alucinações, dizia ver Sérgio Fleury, seu torturador, nos corredores da universidade e entre as árvores do convento. Suas cartas revelam o esgotamento psíquico e a profunda solidão existencial. Em 10 de agosto de 1974, Tito se enforcou com um cinto em um bosque próximo ao mosteiro de L'Arbresle, na França.

Seu suicídio foi a última etapa de um processo de aniquilação psicopolítica que a ditadura aplicou com método. Como disse Frei Betto, Tito “foi assassinado em etapas”.

Hoje seu rosto, jovem e calmo, estampa cartazes de movimentos estudantis, grupos pastorais e coletivos de memória que lutam por justiça transicional e pelo direito à verdade. A imagem de Tito resiste ao tempo porque incorpora um duplo testemunho: o do Evangelho radical e o da militância consciente. Seu corpo torturado foi transformado, paradoxalmente, em símbolo de libertação.

É também símbolo daquilo que o Estado brasileiro jamais reparou por completo: os mecanismos de guerra híbrida aplicados contra religiosos, intelectuais, militantes e artistas que ousaram romper com o pacto de obediência silenciosa. A violência contra Tito é uma estrutura. Seu nome batiza ruas, centros de memória e escolas, mas também precisa circular como categoria analítica. Seu caso ensina que a fé pode ser arma contra a dominação e por isso precisa ser quebrada com requintes de crueldade. Frei Tito não é apenas um mártir. É uma advertência viva contra qualquer forma de ditadura, inclusive aquelas que se disfarçam de progresso, eficiência ou neutralidade.


2.6 Padre Cícero


Entre os muitos religiosos perseguidos, silenciados ou marginalizados pela Igreja institucional, há um caso que desafia qualquer simplificação. Padre Cícero Romão Batista, o padrinho do sertão, foi excomungado, desacreditado, vigiado, reabilitado e, por fim, canonizado informalmente por seu povo. Sua trajetória não se encaixa nas molduras tradicionais da política clerical nem nas vanguardas teológicas. É anterior à guerra híbrida como estratégia, mas já antecipa a lógica de saturação narrativa e disputa simbólica que hoje atravessa os conflitos entre fé e poder.

Padre Cícero foi protagonista de uma das experiências místico-políticas mais emblemáticas do Brasil. No fim do século XIX, em Juazeiro do Norte, sua fama cresceu após relatos de que a hóstia consagrada por ele se transformava em sangue na boca da beata Maria de Araújo. O fenômeno foi interpretado como milagre por milhares de romeiros e como fraude por setores da Igreja e do poder imperial. A partir daí, instalou-se uma disputa prolongada entre o sagrado popular e a ortodoxia eclesial, entre o sertão que clamava por um milagre e as autoridades que exigiam explicações.

A Igreja suspendeu suas ordens, o isolou sacramentalmente e lançou sobre ele uma sombra institucional que só começaria a ser removida um século depois. Nem o Index, nem os decretos eclesiásticos, nem os silêncios oficiais foram suficientes para apagá-lo da memória coletiva. Padre Cícero passou a habitar o território da religiosidade interditada, o mesmo que hoje a guerra informacional busca controlar com novas ferramentas.

Sua figura tornou-se um campo de disputa interpretativa. Parte da intelligentsia nordestina trata a devoção a Cícero como resquício de um passado místico, uma crença que deveria ser abandonada em nome do progresso. Em nome de um ideal ilustrado, sua trajetória foi frequentemente reduzida a folclore. A tentativa de purificá-lo ou enquadrá-lo como um passo superado da cultura sertaneja é uma forma de cancelamento simbólico que opera não pela negação direta, mas pela domesticação retrospectiva.

Ainda assim, sua permanência desestabiliza esse enquadramento. Não porque corresponda aos paradigmas revolucionários do século XX, mas porque seu significado reside justamente naquilo que a racionalidade moderna tenta domesticar: o afeto coletivo e o pertencimento. Sua figura expressa um clamor por soberania espiritual, uma forma de existência religiosa que não depende das metrópoles nem das doutrinas sistematizadas. O Juazeiro que o acolheu tornou-se a Roma do Cariri. A estátua no alto da colina não homenageia um mártir, mas sinaliza a insubmissão do sertão diante das hierarquias eclesiásticas.

A guerra contra Cícero não teve tanques, mas teve cartas apostólicas. Não teve memes, mas teve panfletos impressos. Não teve hashtags, mas teve púlpitos transformados em tribunais. E ainda assim, o povo o reconheceu como santo. Criou romarias, promessas, ex-votos, objetos do cotidiano que transformam a fé em gesto visível. Sustentou, e segue sustentando, uma teologia do afeto sertanejo que Roma, Brasília ou os círculos acadêmicos jamais conseguiram neutralizar.

Nos últimos anos, o reconhecimento institucional começou a se aproximar, ainda que tardiamente, da fé popular. Em 2015, o papa Francisco autorizou o início do processo de reabilitação canônica de padre Cícero. Sete anos depois, em 2022, o Vaticano deu um passo decisivo ao permitir oficialmente a abertura do processo de beatificação, reconhecendo não apenas a trajetória do padrinho do sertão, mas também a legitimidade da devoção que o consagrou como líder espiritual de milhões. Incluir padre Cícero nessa linhagem de perseguidos não é forçar analogias. É admitir que a guerra híbrida contra a soberania popular também se travou nos altares. Padre Cícero foi interditado pela Igreja, reinterpretado pela política e resgatado por seu povo. Tornou-se o santo de um Brasil que resiste com romaria e terço na mão, sem abrir mão daquilo que a história tenta interditar: a fé vivida como pertencimento.




3. Conclusão : altar, trincheira e arquivo de resistência

O que aproxima Dom Helder Câmara, Leonardo Boff, padre Júlio Lancellotti, padre Lino Allegri, frei Tito e padre Cícero vai além da fé. São, cada qual à sua maneira, insubmissos simbólicos: corpos e vozes que desafiaram o pacto silencioso entre religião, poder e conveniência.

Alvejados por campanhas de difamação, interditos por censuras oficiais ou informais, expostos a formas diversas de isolamento, cada um enfrentou engrenagens da guerra híbrida antes mesmo que ela tivesse nome. A máquina operava, e opera pela saturação narrativa, pelo uso estratégico de afetos negativos e pela manipulação dos sentidos. Dispensa quartéis. Basta-lhe um altar, uma câmera e uma multidão ensinada a odiar em nome de um Deus domesticado.

Dom Helder foi silenciado por anunciar o Evangelho como denúncia da desigualdade. Boff, punido por pensar a fé a partir da terra. Júlio, criminalizado por não desviar os olhos da miséria. Allegri, perseguido por recordar os que morreram sufocados. Tito, destruído por insistir em viver com inteireza. Cícero, interditado por amar um povo que não cabia nos manuais da ortodoxia. Cada um, em seu tempo, foi a expressão viva do que o poder teme: a fé que vira verbo.

A guerra mudou de nome, mas não de propósito. Chama-se hoje captura algorítmica, psicopolítica, colonialismo de dados, soberania informacional. Atua nos mesmos territórios: mente e coração. A censura se disfarça de comentário viral. A excomunhão, de cancelamento. A tortura, de esgotamento. A heresia, de "narrativa perigosa". O objetivo permanece: impedir que o Evangelho se traduza em política dos pobres.

Este texto não é homenagem. É mapa. Um desenho possível das linhas de resistência espiritual num país que, vez ou outra, elimina seus profetas com difamações, com ruídos, com memes. Mas o que permanece não é o corpo. É o gesto. A palavra acesa. O fogo estranho que queima sem consumir e que insiste na convicção de que o templo continua sendo campo de batalha.

 
 
 

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