top of page

Soberania começa com geografia

Apesar de ser o estado mais impactado pelo tarifaço de Trump, o Ceará tem sido ignorado por uma cobertura midiática ainda cativa da lógica sudestina e insensível à geoeconomia do país real

A reação midiática brasileira ao tarifaço anunciado por Donald Trump escancarou uma velha disfunção do jornalismo nacional, a centralização quase absoluta da perspectiva paulistana sobre os acontecimentos do país. O anúncio da tarifa de 50 % sobre exportações brasileiras para os Estados Unidos, com vigência a partir de 1º de agosto, foi amplamente tratado por veículos sediados em São Paulo como uma ameaça prioritariamente ao setor de sucos, máquinas e equipamentos industriais paulistas. Pouco ou quase nada foi dito, em tom de alarme ou urgência, sobre o impacto real e imediato da medida no Nordeste, especialmente no Ceará, o estado proporcionalmente mais dependente das exportações para os EUA.

Os números falam por si. No primeiro semestre de 2025, mais da metade de tudo o que foi exportado pelo Ceará teve como destino os Estados Unidos, o equivalente a 52,2 % do total. São Paulo teve apenas 19,5 % da pauta exportadora voltada ao mercado americano. Em valores absolutos São Paulo exportou mais, mas a dependência relativa da economia cearense em relação aos EUA é muito maior. A perda proporcional e o risco de colapso em cadeias produtivas locais, como a siderurgia e a indústria calçadista do Ceará, têm impacto direto no emprego e na renda popular, o que torna o tarifaço um problema nacional com epicentro fora do Sudeste.

Boa parte desse fluxo passa pelo Porto do Pecém, que concentra quase 70 % das exportações do Ceará para os EUA e integra a única Zona de Processamento de Exportações em operação plena no Brasil desde 2019. Trata-se de um complexo logístico decisivo para a balança comercial do Nordeste, onde se concentram investimentos estruturantes e empregos diretos ligados à exportação.

O impacto, no entanto, não se limita ao Ceará. O mel do Piauí está em risco devido às barreiras tarifárias. O estado lidera a produção de mel orgânico exportado para os EUA e pode ver ruir uma cadeia produtiva construída ao longo de décadas por pequenos produtores, cooperativas e políticas públicas de convivência com o semiárido. A ameaça ao mel nordestino, além de afetar a renda de milhares de famílias, compromete um modelo de desenvolvimento sustentável que vinha se consolidando via protagonismo popular.

Além disso, o “elo mais fraco da cadeia produtiva”, formado por quilombolas, ribeirinhos e pequenos agricultores – também será duramente impactado pelo tarifaço. No Pará, cerca de 75 % do açaí exportado vai para os EUA, afetando diretamente a principal fonte de renda de cerca de 300 mil pessoas envolvendo produtores familiares e comunitários. Riscos semelhantes recaem sobre castanhas‑do‑Pará, cupuaçu e bacuri, cuja renda cresce graças à demanda externa, agora ameaçada pelo aumento tarifário.

Ainda assim, a cobertura de grande parte da imprensa comercial e também de veículos independentes permaneceu restrita aos centros industriais de São Paulo. Sequer a Zona da Mata mineira foi incluída, com destaque para possível retração de R$ 250 milhões no setor têxtil de Juiz de Fora e região. Mas não houve o mesmo espaço, ênfase ou escuta dedicada ao Nordeste ou ao Norte. A cobertura ignorou que, além do Ceará, estados como Espírito Santo (33,9 % das exportações para os EUA) e Sergipe (31,4 %) também estão entre os mais vulneráveis à retaliação americana.

Essa cegueira editorial não é nova. Denuncia um vício de origem: a convicção implícita de que o Brasil se define pelo que afeta São Paulo. Quando a dor atinge Picos antes de chegar à Avenida Paulista, a pauta perde relevância, o alarme é adiado e a solidariedade institucional falha. O resultado é político, não apenas simbólico. Um país que permite ignorar as consequências econômicas de uma sanção internacional sobre sua região mais vulnerável, apenas porque essa região carece de poder midiático, financeiro e institucional, renuncia à sua própria coesão.

Ao naturalizar a ideia de que a economia brasileira é a economia de São Paulo, o jornalismo nacional contribui para reproduzir uma soberania parcial e seletiva. Essa lógica não se manifesta apenas no que se noticia, mas no que se constrói diariamente na televisão. Décadas de concentração da grade no eixo Rio‑São Paulo moldaram torcidas nacionais para clubes locais e consolidaram um cidadão médio com desconhecimento geográfico dos próprios estados, semelhante ao do estadunidense médio em relação ao resto do mundo. A hegemonia simbólica de São Paulo não é apenas falha de representação, é invisibilização programada.

É justamente esse modelo de invisibilização que Milton Santos denunciou ao propor a leitura do Brasil a partir dos quatro Brasis, uma tipologia que distingue o Brasil globalizado, o Brasil industrializado, o Brasil periférico e o Brasil excluído. Nessa formulação, o território não se resume à lógica da Região Concentrada, mas revela desigualdades estruturais de visibilidade, circulação e poder. O tarifaço de Trump, ao atingir o Nordeste e o Norte com intensidade, desmascara o pacto de silêncio que ainda submete a maior parte do país a uma espécie de cidadania cartográfica limitada. A crítica à centralidade territorial não é só econômica, é simbólica. E se expressa na maneira como se conta o que importa.

A crítica ao imperialismo estadunidense exige, antes de tudo, o rompimento com o colonialismo interno. Não há soberania possível se os próprios meios de comunicação ainda reproduzem a lógica de um país em que o que acontece em Igarapé-Miri ou em Independência, cidade cearense que extrai um quartizito rosa raro e exporta um quarto de sua produção diretamente para os Estados Unidos, é tratado como nota de rodapé diante dos dilemas de Campinas ou Limeira. Como alertava Milton Santos, o espaço não é apenas o lugar onde as coisas acontecem, mas um campo de relações de poder, visibilidade e existência. É urgente que a imprensa reveja seus mapas afetivos e editoriais. O tarifaço não é uma abstração diplomática nem uma disputa entre gigantes. É um golpe direto a centenas de pequenas e médias empresas nordestinas que exportam peixes, calçados, siderurgia e castanhas. E é também um teste concreto para a coesão federativa e para a credibilidade da nossa comunicação pública e independente.

Soberania não se exige apenas em Washington. Ela se constrói, primeiro, na forma como se narra o Brasil.


  1. Dieese‑PA (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos no Pará)https://www.dieese.org.br

  2. IBGE – Pesquisa Produção da Extração Vegetal e da Silvicultura (PEVS 2023)https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/agricultura-e-pecuaria/9105-producao-da-extracao-vegetal-e-da-silvicultura.html

  3. FIEPA (Federação das Indústrias do Estado do Pará)https://www.fiepa.org.br

  4. OIT (Organização Internacional do Trabalho)https://www.ilo.org/brasilia

  5. Apex‑Brasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos)https://apexbrasil.com.br

  6. Abrafrutas (Associação Brasileira dos Produtores Exportadores de Frutas e Derivados)https://abrafrutas.org

  7. IPECE (Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará)https://www.ipece.ce.gov.br

 
 
 

Comments


at1.jpg
codigoaberto.png

<código aberto> é uma plataforma coletiva de pensamento crítico, voltada à análise dos conflitos contemporâneos a partir de perspectivas políticas, estéticas e informacionais. 

📲 Pix: codigoaberto.net@gmail.com 
Obrigado por caminhar conosco.
O futuro precisa de pensamento livre.

A Rádio e TV Atitude Popular é mais do que um veículo de comunicação; é uma voz comprometida com a democratização das informações e o combate às fake news. Seu compromisso é com a verdade, a pluralidade de vozes e a promoção de um espaço onde todos tenham a oportunidade de se expressar livremente.

📺 Ao vivo em: https://www.youtube.com/TVAtitudePopular
💚 Apoie a comunicação popular!
📲 Pix: 33.829.340/0001-89

bottom of page