Retrato da elite de Fortaleza que não (ainda) reflete o Ceará
- Paola Jochimsen

- há 7 dias
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Voltar para casa depois de muitos anos vivendo na Alemanha carrega uma mistura estranha de sentimentos: expectativa, saudade, ansiedade, medo. Eu estava voltando para minha Heimat. Sim, mais uma das palavrinhas teimosas que aprendi do alemão, que assim como tantas outras não tem tradução, tem um sentido múltiplo entre “lar”, “origem”, “pertencimento” e “paisagem afetiva”. Não é só o lugar onde você nasceu, é o lugar (ou o ambiente) onde você sente que pertence, onde tudo faz sentido sem precisar explicar. E para mim isso define muito bem o meu Ceará. Eu tinha imaginado esse momento inúmeras vezes: meu reencontro (em condições pós-pandêmicas) com o Brasil, com o Ceará, com Fortaleza. Mas o que eu não esperava era que o choque começaria tão cedo, ainda na minha conexão no aeroporto de Lisboa antes mesmo de pisar no solo cearense.
Logo na sala de embarque, reparei num grupo de adolescentes que já ocupava alguns bancos como se estivesse no sofá da sala de casa. Mochilas jogadas no chão, fones de ouvido pendurados, alguns para variar sem interagir entre si e vidrados nos Smartphones, uma montanha de bichos de pelúcia, as últimas postagens nas redes sociais antes de se verem “incomunicáveis”com o mundo e claro é a zuada típica de uma ruma de adolescentes juntos. Até aí, nada demais, afinal, adolescentes são barulhentos mesmo. Ainda tive esperança de que não fossem no mesmo voo que eu, mas como a maioria tinha um uniforme de uma empresa de intercâmbio de Fortaleza, entendi que era impossível não dividirmos o mesmo avião. Então fazer o que? Vamos lá para quase 7 horas de viagem que se transformaram numa observação forçada da geração atual (nem sei mais qual letra no alfabeto estamos…X, Y ou Z)
Não adiantou muito eu ser prioritária com o meu bebê, “passaporte” para minhas filhas adolescentes e meu marido também o serem e entrarmos logo no avião. Eles simplesmente decidiram que aquele avião era o quarto deles. Andavam de meias nos corredores, sentados nos braços das cadeiras ou em cima nelas para conversar com os amigos, falavam alto como se não houvesse outras pessoas tentando descansar. Os comissários de bordo com uma paciência quase sobre-humana, pediam para que voltassem aos assentos ou ao menos deixassem o corredor livre. Nada acontecia. Eles pareciam imunes a qualquer regra de convivência coletiva. E vejam a ironia do destino…eu tive que ouvir das minhas adolescentes (também barulhentas) que preferiam não saber português para não ter que ouvir tanta besteira. Pelo menos eu já tinha providenciado entretenimento para elas em caso de necessidade, mas não esse tipo de necessidade.
E foi aí que percebi algo maior: não era só adolescência, era sobre classe social. Aqueles adolescentes eram, muito provavelmente, parte da elite de Fortaleza. Afinal, vamos ser realistas. Quem tem dinheiro para pagar intercâmbio em Euro? Uma elite que vive numa bolha onde privilégios são naturais, regras são opcionais e a identidade nordestina é algo a ser disfarçado. Nossa região é tão plural que não precisamos imitar ninguém, nossa nordestinidade precisa ser vivida intensamente e ser sinônimo de orgulho.
O que mais me chamou atenção foi a forma como falavam. O sotaque cearence que eu esperava tanto ouvir estava praticamente invisível. A entonação puxava para o Sudeste, como se houvesse um esforço deliberado para apagar qualquer traço de Nordeste. Ouvir “mano”, “mina”, “tá me tirando”, “dá hora”, tá ligado ao invés do “ai dentu”, mah (macho), diabéisso é um arriégua com gosto feriu meus ouvidos. Essa tentativa de se distanciar da própria origem grita ainda mais quando se entende o que acontece fora dali: esses mesmos jovens que tanto tentam performar um padrão “sudestino” jamais será visto como parte deles quando atravessam as fronteiras do Ceará. Aqui, vivem como donos do mundo. Fora daqui, são lembrados do seu lugar. Voltar para cá, depois de dez anos, é reencontrar a cidade e, ao mesmo tempo, perceber que parte dela não quer se reconhecer como nordestina. E talvez essa seja a maior contradição de todas.
Essa experiência dentro do avião e logo na chegada não foi apenas um desconforto passageiro. Foi o primeiro choque de uma série de encontros que, aos poucos, foram desmontando a imagem idealizada que eu tinha guardado da Terra do Sol. A bagunça no voo não era um episódio isolado; era um sintoma de algo maior: da falta de limites, do individualismo exacerbado, da tentativa constante de criar uma aparência de status sem, de fato, construir valores sólidos por trás disso.
Quando finalmente o avião pousou, eu achava que o choque tinha acabado. Mas bastaram alguns dias para entender: não foi o avião que virou quarto; é Fortaleza que virou bolha. Uma bolha onde se esconde a própria identidade e se finge ser o que não se é.

Nos dias seguintes, caminhar pela Beira-Mar me fez perceber como pouco mudou. No eixo Aldeota–Varjota–Meireles, a elite se encontra, se exibe e se reproduz. Nas mesas dos restaurantes, as conversas ecoam em tons forçados, palavras arrastadas, como se o sotaque local fosse um detalhe a ser corrigido. É uma Fortaleza que não quer soar como Fortaleza, como se assumir o Nordeste fosse carregar um estigma. Ainda mais agora que a cidade abriga uma quantidade enorme de milionários que buscam algo na terra do sol que ainda não descobri o que é.
A Fortaleza real, periférica, quente, pulsante, desigual, violenta e tão cheia de adjetivos, a qual passei grande parte da minha vida fica do outro lado da rua. Bem pertinho no Mucuripe, Caça e Pesca, Vicente Pinzón, Morro do Ouro, Pirambu…sem falar nos bairros mais afastados. Naquele pedaço de calçadão, a brisa do mar parece empurrar para longe tudo que possa lembrar pobreza, violência, precariedade. É uma bolha que ignora o entorno.
Mas essa bolha fala alto. Não apenas no tom das vozes, mas no silêncio sobre o que incomoda: o medo da cidade, o receio dos bairros “fora do eixo”, o desconforto com tudo que seja muito nordestino. A não ser é claro que seja “gourmetizado”. A elite de Fortaleza parece viver num esforço contínuo de performar um pertencimento que não tem. Querem parecer cosmopolitas, querem parecer brancos (sim… a sociedade alencarina é mestiça), querem parecer do Sudeste. Mas, ao mesmo tempo, vivem numa cidade onde a maioria carrega no corpo, no rosto e na voz tudo aquilo que eles tentam apagar.
E assim começou a minha jornada de redescoberta e de estranhamento com o meu Ceará. Um lugar que eu conhecia tão bem, mas que, ao mesmo tempo, parecia outro. Enquanto caminhava pelas ruas e avenidas de Fortal uma sensação tomou conta de mim: talvez, no fundo, eu tivesse voltado para um lugar que sempre foi assim, porém o problema é que eu é que tinha mudado e Fortaleza teima em não querer ser mais minha Heimat.


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