Adaptações de livros me irritam muito (e o problema de embranquecer o que é diverso)
- Paola Jochimsen

- 19 de out.
- 4 min de leitura

Eu tenho um problema com adaptações de livros para o cinema. Não interessa o livro — as chances de eu assistir a uma adaptação são bem remotas. E digo isso como leitora voraz, daquelas que devoram páginas como quem respira e se o livro é bom fico horas sem beber água ou ir ao banheiro. Raríssimas vezes (tão raras que nem lembro) gostei de um filme baseado num livro, chi que o ideal é fazer uma minissérie, mas não daquelas que incluem personagens que não existiam no original e que por vezes foram criados só para dar dinâmica ao enredo. Não falo com arrogância, mas no quesito cinema prefiro filmes originais e quando sai fora desse eixo perco muito rápido o interesse.
Parece que nunca conseguem escolher atores que realmente se encaixem nos papéis. Mas o pior de tudo, o que mais me incomoda, é o embranquecimento de personagens. E isso volta a acontecer na nova adaptação de O Morro dos Ventos Uivantes (2025), dirigida por Emerald Fennell. No livro, o protagonista Heathcliff é descrito explicitamente como “aquela coisa de pele escura e cabelos pretos, tão negros como se o próprio Diabo a tivesse enviado”. A passagem deixa pouca margem para dúvida e se seguem toda a narrativa em relação Heathclif.
“Mr. Heathcliff, porém, contrasta singularmente com o ambiente que o rodeia e o modo como vive. É um cigano de pele escura no aspecto e um cavalheiro nos modos e-no trajar, ou melhor, tão cavalheiro como tantos outros fidalgotes rurais um pouco desmazelado talvez, sem contudo deixar que essa negligência o amesquinhe no seu porte altivo e elegante, se bem que taciturno.”
Mesmo assim, mais uma vez o personagem virou branco. Agora na pele do queridinho da vez: Jacob Elordi, um ator branco que nem de longe se encaixa na descrição de Heathcliff. Desde que o livro começou a ser adaptado, só recordo de uma única exceção de 2011, com James Howson em um raro momento em que respeitaram a descrição original. Antes disso, nos anos 90, Ralph Fiennes (ator fenomenal, diga-se de passagem) também interpretou Heathcliff, novamente branco. E quase ninguém parece se incomodar com esse apagamento.
E isso não começou ontem. O cinema tem um histórico longo e incômodo de apagar identidades raciais. Lembra de A Estirpe do Dragão (1944), em que Katharine Hepburn, uma mulher branca, interpretou uma personagem asiática? Exatamente isso uma asiática! Ou de Bonequinha de Luxo (1961), onde Micky Rooney, também branco, fez o papel caricato e ofensivo do Sr. Yunioshi, um japonês? Pois é … o yellowface também foi normalizado por décadas. No Brasil, não é diferente. Me vem à mente O Guarani (1996), em que Márcio Garcia interpretou Peri, um protagonista indígena. Até onde sei, ele não tem ascendência indígena. E, curiosamente ou revoltante mesmo, esse tipo de escolha raramente vira escândalo.
Agora, basta acontecer o contrário para o fuá começar. Lembro da comoção quando Noma Dumezweni, atriz negra, foi escolhida para interpretar Hermione Granger na peça Harry Potter and the Cursed Child (2016). Parte do público reagiu como se a imaginação só funcionasse para embranquecer: “não corresponde à descrição do livro”. A ironia? J.K. Rowling (aquela mesma senhora transfóbica) saiu em defesa da escalação, lembrando que os livros nunca afirmam que Hermione é branca — falam de cabelos crespos, inteligência e determinação. Dumezweni foi impecável em cena, e a reação exagerada apenas expôs uma indignação seletiva que permanece muito viva.
Algo semelhante aconteceu com Seu Jorge ao interpretar Carlos Marighella, o guerrilheiro brasileiro. Bastou o filme estrear para surgirem comentários de que ele seria “preto demais” para o papel — como se a cor exata da pele fosse um obstáculo à narrativa, mas nunca quando o sentido se inverte.
Parece até estamos discutindo uma pauta identitária sem fundamentos, mas para uma nordestina que sempre se viu subrepresentada com personagens extremamente caricatos e um sotaque tão artificial que não existe em nenhum dos estados do nordeste, esse tipo de normalização me revolta. Por sorte de uns tempos para cá, algumas produções soaram como música aos meus ouvidos. Guerreiros do sol (2025) é uma delas composta majoritariamente por atores nordestinos.
E talvez tudo isso tenha também uma raiz mais cínica: o velho capitalismo. No fim das contas, vender o “branco” ainda é o que mais rende. A indústria sabe disso e continua apostando no mesmo molde, porque o rosto branco é visto como mais “universal”, mais “comercial”, mais “palatável” para exportação. É o mesmo mecanismo que embranquece capas de livros, campanhas de beleza, heróis de ação e até Jesus (nascido no atual território da Palestina). A diversidade, quando aparece, vem medida e calculada: só o suficiente para parecer moderna, nunca o bastante para incomodar quem compra o ingresso.
Talvez essa tolerância ao embranquecimento venha de muito atrás, dos tempos do blackface, quando o “normal” eram atores brancos se pintarem para representar pessoas negras ou asiáticas. A gente gosta de fingir que superou isso, mas o hábito ficou, mais sutil, mais palatável para quem prefere não ver o problema. Não é só sobre cor de pele ou sotaque: é sobre ser visto, ser reconhecido, existir sem caricatura nem apagamento. E é por isso que fico com o pé atrás com adaptações: porque, quase sempre, quando abrem o livro para escalar o elenco, fecham os olhos para quem os personagens realmente são.


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