O fim da infância (como conhecemos)
- Sara Goes
- há 5 dias
- 7 min de leitura
Quando a infância é guiada por algoritmos, o erro vira falha de sistema. A inteligência artificial corrige antes que a criança experimente, responde antes que ela pergunte, antecipa antes que ela imagine. E sem tropeço, não há infância, só programação

Os dois textos de Reynaldo Aragon (O direito de hesitar e Como a IA vai redefinir a existência humana) me chamaram atenção por razões que se entrelaçam: enquanto um defende o valor da pausa, do intervalo entre estímulo e resposta, o outro nos alerta sobre um tempo em que talvez não haja mais espaço para hesitar. Pensei imediatamente na infância, que é feita dessas brechas: tentativas, erros, silêncios, repetições e, só depois, acertos. Hesitar é parte do crescimento. Redefinir a existência sem isso é, em alguma medida, impedir que ela floresça.
Em O Fim da Infância, Arthur C. Clarke ousou algo raro até mesmo dentro da ficção científica, atravessar gerações em sua narrativa, abandonando protagonistas e reformulando o foco à medida que o tempo avança. Essa passagem ampla do tempo não é apenas uma escolha formal, ela denuncia uma perda, lenta, irreversível e sem retorno. A humanidade, sob tutela extraterrestre, alcança uma era de paz e estabilidade, mas ao custo da própria essência. O que se perde ali não é apenas a infância enquanto fase biológica, mas a infância como espaço simbólico de criação, imaginação e vínculo.
Clarke, como tantos autores de ficção científica, parecia prever o futuro por reelaborar o presente. Ao descrever uma transição silenciosa, mas totalizante, ele antecipava aquilo que Rey chamou de dominação invisível: um tipo de captura que não impõe, mas se insinua como comodidade. O livro escrito em 1953 é uma alegoria das forças que hoje capturam a infância não com naves e raios paralisantes, mas com câmeras frontais, algoritmos preditivos e contratos de patrocínio. A literatura sci-fi, longe de ser adivinhação, sempre foi diagnóstico, e o de Clarke é preciso: a verdadeira ameaça ao sentido da infância não vem de fora, mas de dentro, do próprio sistema humano, tecnológico e econômico, que aprendeu a explorar a infância como imagem, moeda e performance.
Se sua alegoria era sobre o fim da infância como prelúdio de uma nova espécie, o que vivemos hoje é o fim da infância como campo protegido. E, talvez, como espaço de erro.
O erro como interdito, da aprendizagem ao adestramento

Em pedagogias emancipatórias, errar nunca foi sinônimo de fracasso, mas de potência. Jean Piaget entendia o erro como sinal de que a criança está tentando reorganizar o mundo. Para Vygotsky, ele é a fronteira fértil entre o que se sabe e o que se pode aprender com o outro. Paulo Freire ensinava que o erro é parte do processo crítico de libertação, e não um desvio a ser punido. Donald Winnicott alertava que a maturidade só se constrói se a criança puder falhar, testar, improvisar, sem ser esmagada por exigências de performance.
Mas o que acontece quando o erro desaparece? Quando a infância é moldada não para descobrir, mas para performar?
Hoje, a infância é uma vitrine. Nas redes sociais, crianças são alvos fáceis e baratos, como vítimas de crimes, como agressores moldados por algoritmos ou como moeda afetiva no mercado da visibilidade. E, cada vez mais, são os próprios pais que as expõem, transformando a infância dos filhos em conteúdo, mercadoria emocional, vendida em troca de curtidas, seguidores e relevância digital.
Existe uma verdadeira indústria em transformar a rotina dos filhos em reality show permanente. A linha entre afeto e exploração se rompe quando o registro cotidiano vira estratégia de engajamento. Filhos viram produtos e o cuidado cede lugar à lógica da monetização. São consumidos em vídeos virais, treinados para encantar e arrastados para uma lógica de espetáculo. O erro, esse ato sagrado da infância, vira risco de imagem, e portanto deve ser editado, apagado, prevenido. É exatamente esse deslocamento, do erro como aprendizado para o erro como falha sistêmica, que a lógica da IA generativa parece radicalizar, segundo Rey. A fricção desaparece porque precisa ser corrigida antes mesmo de se manifestar.
Segundo o estudo Ofcom Children and Parents Media Use and Attitudes Report (2024), mais de 70% das crianças entre 8 e 11 anos não conseguem diferenciar vídeos gerados por inteligência artificial de vídeos reais. Essa incapacidade de distinguir o verdadeiro do simulado já é um dado empírico da crise da formação crítica. A infância, então, não apenas acaba, ela se dilui.
A razão infantil, colonizada

Silvio Gallo, em sua conferência "Para uma crítica da razão infantil", propõe uma ruptura: “Para descolonizar as crianças, seria absolutamente necessário abandonar a infância”. Não a infância enquanto tempo de vida, mas enquanto projeto ideológico, a ideia romantizada da criança pura, passiva, despolitizada. Gallo acerta ao desmontar essa idealização colonial. Mas seu pensamento ganha urgência num tempo em que o neoliberalismo transforma pais em influenciadores, o cuidado em capital simbólico e os filhos em conteúdo.
A paternidade performática encontrou seu ápice na estética Bobbie Goods, nos bebês reborn de mães fictícias e nos bonecos Labubu, onde adultos se refugiam em versões kitsch de uma infância editada, não para proteger as crianças reais, mas para fugir de suas responsabilidades. É o que Ivan Illich já apontava: quando a infância deixa de ser vivida e passa a ser consumida, a escola vira uma extensão da vitrine, e o professor, um operador de controle.
A infância sob ataque, entre o algoritmo e o autoritarismo

Essa fuga tem consequências práticas. A crise da educação pública, especialmente no Sul Global, é um testemunho de como o neoliberalismo esvaziou o pacto geracional. A escola já não é lugar de aprendizado, mas de contenção. O professor já não é autoridade cognitiva, mas alvo de desconfiança. E a criança já não é o sujeito do futuro, mas um problema do presente. A extrema direita sabe disso, e explora. Enquanto a pedagogia vira trincheira, a mediação algorítmica vai se instalando como forma hegemônica da experiência, apagando o conflito e oferecendo soluções que dispensam perguntas. Essa dupla captura, uma pelo autoritarismo, outra pela eficiência, deixa a infância sitiada.
Em meu artigo Teologia do Sofrimento Infantil, analisei como a extrema direita brasileira instrumentaliza a figura da criança para justificar políticas autoritárias e vigilância moral. Trata-se de um discurso messiânico em que o sofrimento infantil é apresentado como prova de decadência social, e, portanto, como justificativa para o controle dos corpos, das escolas e das famílias. A infância, nesse projeto, é uma trincheira ideológica, e a pedagogia, um campo de batalha.
A infância preditiva, quando a IA apaga o erro

Mas talvez a ameaça mais sutil, e mais perigosa, seja a que vem travestida de eficiência. Reynaldo Aragon, ao analisar a Estratégia H1 da OpenAI, adverte: o superassistente algorítmico inaugura uma nova forma de dominação invisível, não imposta, mas ofertada como conforto. Ao se infiltrar nos hábitos, afetos e decisões cotidianas, a IA substitui o erro pela predição, a dúvida pela resposta, o conflito pela fluidez. A infância, nesse modelo, deixa de ser zona de experimentação e se torna território de cálculo.
Sob a lógica da IA generativa, a criança não explora, ela é guiada. Não se perde, é corrigida. Não imagina, é alimentada por estímulos programados. A educação algorítmica promete uma infância sem tropeços, mas entrega um adestramento precoce à obediência da máquina. Não se trata de um futuro distante. Trata-se de uma disputa já em curso sobre quem decide o que uma criança deve aprender, sentir e esquecer.
Gaza, o fim absoluto da infância

Mas talvez nada seja mais brutal do que aquilo que o mundo inteiro testemunha e finge não ver: o genocídio infantil em Gaza. São crianças esmagadas sob escombros, mortas por bombas inteligentes, mutiladas por bloqueios deliberadamente mantidos, famintas diante das câmeras, silenciadas nos discursos diplomáticos. Crianças apagadas não só da vida, mas da linguagem, reduzidas a números voláteis, a "danos colaterais", a silhuetas borradas nos relatórios das Nações Unidas.
Há vídeos de corpos enfileirados, vozes infantis em últimos áudios desesperados, pais arrancando mãos da terra como gesto de reconhecimento. E, mesmo assim, a normalidade internacional segue intacta.
Não há civilização que sobreviva a isso. Não há narrativa de progresso, não há ideia de humanidade, não há ordem jurídica, científica ou religiosa que possa reivindicar moralidade enquanto consente com o massacre sistemático de crianças.
Clarke escreveu sobre uma humanidade que perdia seus filhos porque eles se tornavam outra coisa, inalcançável, uma transição que dissolvia a linguagem. Nós, hoje, perdemos nossos filhos porque não os protegemos. Porque aceitamos que fossem usados como escudos, como propaganda, como moeda de chantagem política. Porque silenciamos diante da expropriação final da infância.
Contra a infância higienizada, o direito de errar

Clarke escreveu sobre uma humanidade que perdia seus filhos porque eles se tornavam outra coisa, inalcançável, uma transição tão radical que dissolvia a linguagem, os vínculos, a história. Nós, hoje, perdemos nossos filhos de outra forma, porque não os protegemos, porque permitimos que fossem usados como escudos, como propaganda, como moeda de chantagem política, porque aceitamos que a infância em certas geografias vale menos do que o silêncio confortável da diplomacia, porque há aqueles que ainda acreditam que uma criança palestina não chora como uma criança europeia. E não há ficção, por mais devastadora, que consiga competir com esse tipo de verdade.
Reivindicar a infância é reivindicar o erro, a lentidão, o espanto. É afirmar, como propõe Reynaldo Aragon, uma ética da fricção, onde a dúvida seja valorizada, o atrito seja condição de liberdade e o cuidado não seja capitalizado.
A luta pela infância é a luta contra a substituição da experiência pela predição, contra o fetiche da eficiência, contra a privatização da imaginação. É luta pela escola como espaço do comum, pela criança como sujeito de direitos, e pela tecnologia como aliada da vida, não como operadora da servidão consentida.
Enquanto houver uma criança capaz de fazer perguntas em sequência infinita, desafinada, fora de hora, uma criança que interrompa o script, que atrapalhe o algoritmo, que invente nomes para o que ainda não existe, que fique em silêncio só para imaginar o que vem depois, a infância ainda não foi capturada. E o futuro ainda está em aberto.
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