PLs contra adultização dividem foco entre punição e regulação das big techs
- Sara Goes

- 13 de ago.
- 6 min de leitura
Após o vídeo de Felca, 17 projetos na Câmara variam de propostas moralizadoras a medidas técnicas, mas poucos atacam a lógica das plataformas que lucram com conteúdos nocivos a crianças

O conjunto de 17 projetos de lei apresentados na Câmara dos Deputados após a repercussão do vídeo do youtuber Felca, que expôs a presença de conteúdos sexualizados envolvendo crianças em plataformas digitais, revela uma reação legislativa marcada por diferentes graus de moralização, objetividade e responsabilização das big techs. A maioria das propostas parte de parlamentares de partidos de direita e centro-direita, embora com variações de enfoque. Há desde textos de natureza amplamente moralizadora, que ampliam conceitos penais de forma genérica, até propostas mais técnicas, voltadas para tipificar condutas específicas e responsabilizar atores da cadeia digital.
Em termos de moralização, alguns projetos incorporam conceitos amplos e subjetivos. O PL 3850/2025, do deputado Cabo Gilberto Silva (PL-PB), cria o crime de “sexualização digital ou impressa” de crianças e adolescentes, incluindo conteúdos que retratem menores de forma “sexualmente sugestiva” ou “erotizada”, mesmo que não configurem pornografia explícita. A redação prevê pena de 4 a 8 anos de reclusão e multa, com agravantes para casos com fins econômicos ou uso de tecnologia. Embora busque fechar lacunas jurídicas, o texto adota formulações abertas que podem gerar interpretações subjetivas e risco de censura de conteúdos lícitos. O PL 3840/2025, do deputado Abilio Brunini (PL-MT), segue linha similar ao criminalizar a “exposição indevida de crianças em redes sociais” por pais, responsáveis ou terceiros, sem delimitar com clareza o que constitui exposição indevida.
No campo da objetividade, destacam-se propostas que especificam condutas e cenários tecnológicos. O PL 3861/2025, da deputada Andreia Siqueira (MDB-MG), inclui no Código Penal a criminalização da disponibilização de links, QR codes ou recursos digitais que direcionem a pornografia infantil ou grupos dedicados à sua divulgação, equiparando tal conduta à própria distribuição do material. O PL 3856/2025, de Silas Câmara (Republicanos-AM), também tipifica com mais precisão a indução ou instigação de crianças e adolescentes, por meio digital, à prática de atos libidinosos, criando agravantes quando há uso de inteligência artificial para manipulação de imagens. Essas propostas tendem a oferecer maior segurança jurídica por delimitar comportamentos puníveis e tecnologias envolvidas.
A responsabilização das big techs aparece de forma desigual. Alguns textos sequer mencionam a obrigação das plataformas, limitando-se a punir indivíduos. O PL 3878/2025, do deputado Capitão Alberto Neto (PL-AM), é um dos poucos que avança nesse sentido ao propor a inclusão, no Marco Civil da Internet, da obrigação de retirada imediata de conteúdo sexual envolvendo menores mediante notificação, sob pena de responsabilização solidária. Já o PL 3848/2025, do deputado Paulo Bilynskyj (PL-SP), cria deveres mais amplos para provedores de aplicação, impondo mecanismos proativos de detecção e bloqueio de conteúdos, com sanções administrativas em caso de descumprimento. Ainda assim, as obrigações são formuladas de modo genérico e não enfrentam de forma estruturada o modelo de negócios das plataformas que favorece a circulação e monetização desses conteúdos.
Outros elementos chamam atenção, como a sobreposição de tipificações. Mais de um projeto prevê punição para a indução de menores a práticas sexuais em ambiente digital, mas com penas e descrições diferentes, o que pode gerar conflitos de aplicação. Há também omissões significativas, como a ausência de previsão de auditoria independente nos algoritmos de recomendação, mecanismo apontado por especialistas como essencial para enfrentar a lógica de amplificação que expõe crianças a riscos.
O conjunto dos PLs, ao mesmo tempo em que responde à pressão social causada pela denúncia pública, revela uma predominância de respostas penais imediatas, muitas vezes com caráter moralizador e sem integrar medidas estruturais para atacar a raiz do problema, que envolve a arquitetura das plataformas e o incentivo econômico à viralização de conteúdos sensacionalistas ou sexualizados.
Um capítulo à parte é o PL 2628/2022, apresentado no Senado no ano anterior pelo senador Alessandro Vieira (MDB-SE). Diferentemente de boa parte dos projetos mais recentes, essa proposta se insere em um contexto mais amplo de regulação de plataformas digitais, prevendo regras de transparência, deveres de cuidado, mecanismos de auditoria e responsabilização de provedores por danos decorrentes da circulação de conteúdos ilícitos. Embora não trate exclusivamente da adultização ou da proteção infantil, o PL 2628/2022 oferece um arcabouço regulatório capaz de dialogar com as novas propostas da Câmara, pois estabelece fundamentos para exigir que as big techs adotem medidas preventivas e não apenas reativas. Sua integração com projetos específicos de combate à exploração e sexualização infantil poderia resultar em uma legislação mais consistente, equilibrando proteção de direitos fundamentais, combate a crimes e preservação da liberdade de expressão.
Saúde mental e proteção psicossocial
A maior parte dos projetos concentra respostas penais e medidas de moderação, mas há diferenças evidentes quando se analisa o critério da saúde mental. O PL 3880, de Erika Kokay (PT-DF), tipifica a produção e divulgação de conteúdo que incite crianças e adolescentes a atos capazes de causar dano físico, como desafios virtuais, com aumento de pena em caso de lesão grave ou morte. Ao mesmo tempo, cria uma Campanha Nacional de Conscientização sobre Educação Digital e integra ações de valorização da vida, prevenção do suicídio e fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial. A proposta sinaliza uma abordagem de risco e cuidado que ultrapassa o punitivismo e conecta escola, saúde e plataformas.
O PL 2628, do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), estabelece dever de cuidado por desenho e por padrão para produtos e serviços usados por crianças e adolescentes. Exige configuração protetiva por padrão, veda o perfilamento para publicidade dirigida a menores, proíbe loot boxes em jogos acessíveis a crianças e manda prevenir padrões de uso associados a vício, ansiedade, depressão e outros transtornos. Também prevê relatórios semestrais e sanções que podem chegar a dez por cento do faturamento, limitadas a cinquenta milhões de reais por infração. A proposta incorpora a dimensão psicossocial como obrigação técnica do fornecedor, com incentivos concretos para um desenho menos aditivo e mais seguro, incluindo a limitação de mecanismos como o chamado efeito “toca de coelho”, em que a recomendação automática leva a um consumo cada vez mais intenso e difícil de interromper, já alvo de decisões judiciais na União Europeia.
Duas iniciativas na Câmara ampliam o eixo preventivo. O PL 3837, de Duarte Jr (PSB-MA), institui a Política Nacional de Conscientização e Combate à Adultização Infantil, com campanhas, materiais didáticos, capacitação e canais de denúncia, sob coordenação do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Oferece infraestrutura pública para uma resposta não só penal, mas educativa e psicossocial, capaz de mitigar ansiedade, culpa e estigmas que atingem crianças expostas e suas famílias. O PL 3877, de Airton Faleiro (PT-PA), combina vedações a publicidades e eventos que induzam à adultização com protocolos internos, canais de denúncia, capacitação e campanhas nacionais, criando um ambiente institucional de prevenção, educação midiática e moderação responsável no cotidiano de escolas, meios de comunicação e eventos.
No recorte de participação e pressão psicológica, o projeto de Talíria Petrone (PSOL-RJ) reconhece o trabalho infantil artístico digital sempre que houver exploração econômica. Exige autorização judicial prévia, limita tempo de participação e cria mecanismos de escuta ativa e denúncia para adolescentes criadores, garantindo ambiente seguro e confidencial para relatar exploração, sobrecarga, pressão indevida ou abuso. Também impõe suspensão imediata da monetização e remoção preventiva em situações de risco, reduzindo os incentivos econômicos que alimentam a sobrecarga e o desgaste emocional de crianças e adolescentes.
Algumas propostas focam na ruptura de rotas de abuso, com impacto indireto sobre a saúde mental. O PL 3861, de Andreia Siqueira (MDB-RR), criminaliza a intermediação por links e QR codes que levem a pornografia infantil, com agravante quando praticada em plataformas de grande alcance, cortando vetores de revitimização e humilhação pública que agravam transtornos como estresse pós-traumático, depressão e ansiedade. Em contrapartida, projetos centrados exclusivamente na expansão de tipos penais amplos, como o PL 3850, de Cabo Gilberto Silva (PL-PB), punem material sexualmente sugestivo mesmo sem nudez, mas não preveem instrumentos de cuidado, prevenção ou suporte psicossocial. Embora possam reduzir a circulação de conteúdos nocivos, deixam descoberto o tratamento dos danos emocionais e o desenho de ambientes digitais menos aditivos.
Em síntese, os textos que integram a saúde mental ao desenho regulatório são os que combinam deveres técnicos de produto e serviço, canais de escuta e encaminhamento, campanhas e rede de cuidado. O PL 3880 articula educação digital e fortalecimento da rede psicossocial, o PL 2628 amarra design protetivo, verificação etária e limites a práticas aditivas, o PL 3837 cria uma política nacional capaz de sustentar acolhimento e prevenção, o PL 3877 transforma protocolos e campanhas em rotina institucional e o projeto de Talíria Petrone protege contra sobrecarga e pressão por meios econômicos e procedimentais. Todos convergem para reduzir o sofrimento psíquico associado à adultização e à exploração digital.



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