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Pietás e dinossauros

Meu filho completou um ano de vida e nós fizemos uma festa. Bolo, doces, balões, uma cerimônia simples, mas cheia de amor. Eu, que fiz 40 anos pouco antes, arrastei a alma e o corpo para garantir que tudo estivesse ali, pago, bonito, digno do menino que tantas vezes temi velar antes de vê-lo crescer. Ele é fruto da minha terceira gravidez, a que veio depois de uma segunda perda devastadora, a que carreguei cercada de depressão e violência doméstica. Naquela festa com tema de dinossauros, exausta, olhei em volta e senti um alívio por estar tudo pago e só depois pensei na naturalidade com que aceitei que meu filho está vivo. Hoje, não tenho nem um centavo para adoçar o café fraco do dia, mas comemorei o que importa: meu filho sobreviveu. Cumpri com a obrigação pequeno-burguesa de mostrar que eu tinha feito uma comemoração "à altura", a necessidade de dar satisfações para um mundo que mede amor em centímetros de balão e camadas de bolo, como se bastasse sobreviver não fosse, por si só, a maior de todas as vitórias.

Luiza Gurjão perdeu o filho, Bergson, na Guerrilha do Araguaia. Bergson foi ao Araguaia com meus tios, que deram ao filho o nome do estudante brutamente assassinado pelo estado. Anos depois, meu destino se cruzou de novo com o de Luiza. Depois de uma perda gestacional, fui parar num psiquiatra. Na primeira consulta, ele falou de Luiza. Descreveu a dor dela, procurando pelos restos mortais do filho como uma Pietá sem o menino nos braços. Foi assim que entendi que certas ausências pesam de forma insustentável.

A ausência. Não o luto organizado das flores e dos discursos. A ausência viva, ardendo nas veias, arrancando o ar dos pulmões.

Pensei nela de novo quando li sobre Walid Khalid Abdalla Ahmad.

Walid tinha 17 anos, brasileiro-palestino. Foi preso em Israel em setembro do ano passado, morreu na prisão de Megido em março. Um menino. Um menino que deveria estar escolhendo qual música mandar pra uma garota, que filme ver, qual rebeldia inventar contra o mundo velho. Mas estava preso. Sem julgamento. Sem defesa. Sem mãe por perto. Morreu de fome, de infecção, de abandono. O Estado de Israel, esse mesmo que gosta de discursar sobre civilização, deixou um menino brasileiro morrer como se fosse bicho acorrentado no escuro.

O corpo dele continua sequestrado há mais de um mês. A mãe, Nida’h, sem poder enterrar o filho, sem poder vê-lo uma última vez. O Brasil pede, pede, e Israel cala.

Enquanto isso, o Exército de Israel sequestrou também Salah Al-Din Yasser Hamad, primo de Walid, outro adolescente brasileiro-palestino. Salah está em Ofer, um presídio conhecido por quebrar corpos e almas. Vinte e uma acusações num tribunal militar, onde nem a própria inocência tem direito de entrar pela porta.

Quando um brasileiro morre em ataque do Hamas, como Ranani Glazer, a dor é reconhecida, publicada, lamentada em cadeia nacional, como tem que ser. Mãe é mãe em qualquer geografia. O Estado brasileiro mandou condolências, mobilizou diplomacia, acolheu a família, como tem que ser.

Mas quando o jovem morto é palestino, o silêncio vem fácil. O Itamaraty solta uma nota. O corpo apodrece na geladeira de um governo que brinca de genocídio. Os jornais chamam de “detenção”, como se cadeia para menino de 17 anos fosse rotina. Como se Nida’h não estivesse vivendo a mesma ausência insustentável que Tatiana, a mãe brasileira de Ranani. Como se a carne de Walid fosse menos carne. Como se a dor de Nida’h não fosse a mesma dor de Tatiana.

Mas eu sei.

Quem já carregou um filho morto nos braços, quem já conheceu a violência da ausência que mata todo dia, sabe.

Não existe mãe meio órfã. Não existe ausência pela metade. Não existe lágrima que tenha nacionalidade.

O que existe é a decisão política de quem pode ser lembrado como vítima e quem deve ser descartado como estatística.

Walid foi descartado.

Como Bergson, como tantos, como todos aqueles que a violência estatal, seja vestida de farda no Araguaia ou de uniforme em Megido, decide que não merecem futuro.

Com a diferença de que, décadas depois, Bergson teve sua luta reconhecida, seu nome lavado da lama dos assassinos. Sua mãe recebeu, ainda em vida, a justiça que o país lhe devia. Tardia, dolorosa, mas real. E é importante que isso seja dito, porque a memória de Bergson também é a memória de quem, como eu, conhece sua família e sabe que o nome dele foi reabilitado na história, um esforço de justiça, por mais que demorado.

Que Walid, Salah e todos os meninos palestinos não precisem esperar cinquenta anos para que sua humanidade seja finalmente enxergada.

Aqui, entre nós, que conhecemos o luto de verdade, a ausência não se domestica. Nem a nossa memória.

E nós não vamos esquecer.


 
 
 

1 commentaire


Maria Helena Gomes
29 avr.

Sara, parabéns pelo belo texto! Parabéns pelos seus 40 anos tão intensamente vividos a ponto de lhe conferir tanta sensibilidade ao tratar deste tema tão delicado - a ausência de um filho na vida de uma mãe. Parabéns pelo primeiro de muitos anos do Luiz! Sou sua fã. Beijos

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