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Pelo aborto amplo e geral e irrestrito


2022

A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados aprovou, no último dia 27, por 35 votos a 15, a admissibilidade da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 164/2012. A proposta afirma garantir a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção, mas o que ela realmente garante é outra coisa: o aprofundamento de uma política de controle, que aprisiona corpos e silencia vozes.

A votação na CCJ foi marcada por horas de debates acalorados, recheados de duras críticas de parlamentares contrários à proposta e de manifestações de movimentos feministas. Um protesto de um grupo de mulheres dentro do plenário intensificou a tensão. Após palavras de ordem e cartazes exibidos contra a PEC, as manifestantes foram expulsas do espaço por determinação da deputada bolsonarista Caroline De Toni (PL-SC), que presidia a sessão.

A ação autoritária gerou novas faíscas do lado de fora do colegiado, onde as manifestantes expulsas se reagruparam e continuaram o protesto. A situação foi agravada quando a Polícia Legislativa proibiu a circulação de pessoas na porta do plenário, o que dificultou o trabalho de jornalistas que cobriam a votação. A repressão às manifestações e a restrição ao acesso da imprensa transformaram a sessão em um palco de conflitos que está além das paredes do Congresso.

Embora não seja nenhuma percepção genial, a aprovação da admissibilidade de uma PEC que pode levar à proibição do aborto em qualquer circunstância pode ser interpretada como uma estratégia para desviar a atenção do público das investigações e indiciamentos relacionados ao golpismo do ex-presidente Jair Bolsonaro. No entanto, mesmo que a proposta funcione como uma cortina de fumaça, ela levanta uma discussão urgente sobre a ampliação dos direitos das mulheres e a necessidade de se debater o aborto como questão de saúde pública e justiça social.

Na aparência, a PEC 164 tenta preencher uma lacuna deixada pela Constituição, que já assegura a inviolabilidade do direito à vida, mas não define o momento em que ela começa. Para os defensores, trata-se de um marco ético e jurídico. Para as mulheres, contudo, representa mais um avanço do autoritarismo moral sobre suas vidas. A legislação brasileira já é cruel: o aborto só é permitido em casos de estupro, risco de morte para a gestante ou anencefalia. Fora dessas situações, o sofrimento das mulheres não é considerado. Essa crueldade não é teórica. Ela é vivida no corpo e na alma. Sei disso porque ela atravessou minha vida e deixou marcas profundas.

Com a aprovação da admissibilidade pela CCJ, a PEC 164 segue para uma nova fase de tramitação. Agora, o mérito do texto precisa ser analisado por uma comissão especial, que ainda deverá ser criada por meio de despacho da presidência da Câmara. Caso seja aprovada por essa comissão, a PEC será submetida a dois turnos de votação no plenário da Câmara dos Deputados, onde precisará de pelo menos 308 votos em cada turno para seguir adiante. Se aprovada, enfrentará um processo semelhante no Senado, o que demonstra que, embora a admissibilidade seja um avanço, o texto ainda tem um longo caminho a percorrer. A PEC vai ficar na coleira e será solta até o próximo escândalo.

É o caso do Projeto de Lei (PL) 1904/2024, conhecido como PL do Aborto. O texto equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples, mesmo nos casos em que a gravidez resulta de estupro, algo atualmente permitido por lei. Apesar de estar parado na Câmara desde abril, após pressão contrária de parte da sociedade, o projeto já teve um requerimento de urgência aprovado, o que pode levá-lo diretamente ao plenário, sem a necessidade de análise por comissões temáticas. Lideranças bolsonaristas consideram o PL do Aborto uma pauta mais "simples" de avançar do que outras, como o PL da Anistia, que busca proteger envolvidos nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023.

A combinação da PEC 164 com o PL 1904/24 reflete um esforço coordenado para restringir ainda mais os já limitados direitos reprodutivos no Brasil. Esses projetos não consideram as complexidades das gestações, as consequências físicas e emocionais para as mulheres, nem os dramas que vivem aqueles que, como eu, enfrentaram uma gravidez inviável.

Em 2022, eu estava grávida. Uma gravidez planejada, desejada e cercada de sonhos. Durante semanas, organizei cada detalhe: a médica que me acompanharia, o hospital onde eu daria à luz, o nome do bebê que crescia dentro de mim. Tudo parecia perfeito até que, meses depois, durante uma consulta de rotina, recebi a notícia que mudaria tudo. Meu bebê tinha uma malformação rara no sistema urinário. Sua vida era incompatível com o mundo. Ele poderia sobreviver alguns dias, talvez semanas, mas morreria na mais longa das hipóteses, logo após o parto. O diagnóstico foi o primeiro golpe. O segundo foi perceber o abandono que se seguiria. A obstetra que deveria me guiar e proteger tornou-se inacessível. Minhas ligações não eram retornadas, as consultas eram adiadas, e de repente eu me vi sozinha, tentando entender o que significava carregar uma vida destinada a morrer.

Decidi buscar apoio jurídico. Não para aliviar minha dor — porque isso parecia impossível naquele momento, mas para preservar minha sanidade. Eu queria interromper a gestação. A cada dia que passava, a dor emocional se somava ao fardo físico. Eu estava cada vez mais grávida, e cada movimento que eu sentia me lembrava da inevitabilidade da morte. Procurar ajuda jurídica parecia a única solução, mas o que encontrei foi outra sentença: a justiça brasileira não reconhece o direito de interromper uma gestação inviável se a vida da mulher não estiver em risco. Não importava o impacto na minha saúde mental, no meu futuro ou no meu luto. A lei dizia que eu deveria esperar. E esperar foi tudo o que pude fazer.

Durante meses, vivi um limbo. A cada 30 dias, era submetida a punções dolorosas para retirar o excesso de líquido amniótico, enquanto minha barriga crescia e eu me escondia das pessoas. A gravidez, que já não era uma celebração, tornou-se um segredo que eu precisava proteger. Eu evitava encontros, perguntas e olhares que pudessem trazer à tona a realidade que eu estava tentando suportar. Carreguei meu filho até o dia em que seu coração parou. Quando isso aconteceu, senti um misto de alívio e culpa, como se minha dor finalmente pudesse começar a cicatrizar. Mas não foi o fim. O parto do meu filho morto foi marcado por uma sequência de violências obstétricas que transformaram o que já era insuportável em uma experiência ainda mais traumática. Eu saí daquela gestação não apenas sem o meu bebê, mas sem parte de mim. Minha saúde mental foi devastada. A gravidez seguinte, uma nova chance de felicidade, foi contaminada pelos medos e traumas que não me deixaram. Até hoje, minha maternidade carrega as marcas de 2022. Luto diariamente para separar o passado do agora, tentando lembrar que meu filho está aqui.

A PEC 164 e o PL 1904/24 prometem proteger a vida, mas ignoram as mulheres que vivem essas histórias. Ignoram que somos mais do que corpos que carregam filhos. Ignoram que nossa saúde mental, nossas escolhas e nossos futuros também importam. A legislação brasileira já falha em nos enxergar como seres humanos completos. Essas propostas apenas reforçam essa falha, aprofundando um sistema que prefere nos punir a nos acolher.

Minha história é apenas uma entre tantas. Mas é um lembrete do que está em jogo quando políticas como essas avançam: não é sobre proteger a vida. É sobre silenciar as mulheres. E por isso eu insisto:


Sobre aborto amplo, geral e irrestrito:

Os dados mostram que o Brasil não está sozinho no endurecimento do debate sobre o aborto, mas caminha na contramão de muitas nações. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 60% das mulheres no mundo vivem em países onde o aborto é amplamente legalizado. Essas legislações variam, mas muitas nações reconhecem o direito ao aborto como uma questão de saúde pública e um elemento essencial da igualdade de gênero. Países como França, Canadá e Austrália permitem a interrupção da gravidez sob demanda até um determinado período gestacional, geralmente 12 semanas, com algumas condições específicas para casos mais avançados.

Na América Latina, regiões com histórias semelhantes de legislações restritivas começam a dar passos significativos para ampliar os direitos reprodutivos. A Argentina, por exemplo, aprovou em 2020 uma lei que permite o aborto até a 14ª semana de gestação. Já no México, a Suprema Corte descriminalizou o aborto em todo o território nacional, marcando um avanço histórico. Essas mudanças reconhecem que o aborto seguro é uma questão de saúde pública e que sua criminalização só aumenta as desigualdades, atingindo de forma desproporcional mulheres pobres e marginalizadas.

No Brasil, porém, propostas como a PEC 164 e o PL 1904/24 insistem em ignorar essas evidências e reforçar um sistema que privilegia o controle sobre os corpos das mulheres. A criminalização do aborto não reduz o número de procedimentos, mas empurra mulheres para situações de risco. Dados da OMS indicam que a cada ano mais de 25 milhões de abortos inseguros são realizados em todo o mundo, sendo a maioria deles em países onde o procedimento é restrito ou proibido.


 
 
 

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