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O plano era global, mas começou aqui

Documentos inéditos encontrados no Instituto Hoover, em Stanford, revelam a gênese articulada do neoliberalismo no Brasil, sua conexão com o golpe de 2016 e os protestos de 2013, financiados por think tanks ligados a Washington e grandes corporações

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O Brasil não foi capturado por acaso. A revelação do jornalista Bob Fernandes, em entrevista com os pesquisadores Luan Brum e Jahde Lopez, trouxe à tona uma coleção explosiva de documentos inéditos armazenados no Instituto Hoover, da Universidade de Stanford. Foram mais de 140 caixas de arquivos, cartas, relatórios e e-mails trocados entre figuras centrais do projeto neoliberal global – como Friedrich Hayek, Milton Friedman e Margaret Thatcher – e operadores diretos da operação de doutrinação e financiamento político no Brasil. O material prova que o país foi escolhido, planejadamente, como campo de testes e expansão da ofensiva ultraliberal na América Latina.

As revelações, apresentadas no programa do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA), são decisivas para compreender que o avanço neoliberal não foi apenas ideológico ou espontâneo. Ele seguiu uma cartilha precisa: cooptar intelectuais, influenciar jornalistas, infiltrar-se nas universidades, financiar grupos de pressão e moldar legislações. Muito antes da Lava Jato, de 2013 ou de Bolsonaro, o terreno já havia sido preparado – e o rastilho foi aceso ainda nos anos 1990, com o Programa de Assessoria Legislativa para a América Latina. Nesse arranjo, think tanks estrangeiros redigiam leis para o Congresso Nacional com o aval de figuras como Paulo Guedes e a participação de organizações como o Instituto Liberal do Rio, financiado diretamente pelo governo dos Estados Unidos via NED, CIP e USAID.


2013: o ano que não começou em junho

Os protestos de 2013 entraram para o imaginário político como um levante orgânico, fruto da insatisfação popular. Mas os documentos revelam que essa narrativa carece de base material. Em 2010, num encontro no Fórum da Liberdade, articuladores da Atlas Network já desenhavam um plano de guerra cultural para desestabilizar o terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos, demonizar impostos, infiltrar-se nas redações, usar humor crítico como arma política e financiar mobilizações de rua. Estava tudo lá: os slogans, os influenciadores, as estratégias para dominar o debate público e ocupar o centro da arena simbólica.

Esses documentos derrubam a ilusão de que as manifestações de 2013 surgiram como faísca imprevisível da rua. O que emergiu naquele junho foi o resultado de anos de investimento, propaganda e treinamento – um cavalo de Troia plantado com método, timing e capital estrangeiro. A espontaneidade era performance. O roteiro, importado.


De Thatcher a Guedes: a linha direta

A gênese do projeto neoliberal remonta à Inglaterra do pós-guerra, quando Anthony Fisher, ex-combatente britânico, decidiu fundar o Institute of Economic Affairs (IEA), responsável por moldar o “clima das ideias” que permitiu a ascensão de Thatcher. Com apoio direto de Hayek e Friedman, Fisher criou a Atlas Network, uma engrenagem global que passou a financiar institutos liberais em mais de 100 países – 121 só na América Latina. No Brasil, o Instituto Liberal foi o primeiro parceiro. A partir dali, multiplicaram-se organizações como o Millenium, o Mises, o IFL, o MBL e o Estudantes Pela Liberdade.

Os documentos mostram que, nos anos 1990, esses grupos já influenciavam projetos legislativos por meio da “Série Notas”, redigida por economistas formados em Chicago e impressa com verba do governo americano. Em 2018, essa teia resultou na ocupação direta do Estado: 16 dirigentes desses institutos integraram o governo Bolsonaro, entre eles Paulo Guedes, Salim Mattar e Ricardo Salles. O boneco militar ganhou um cérebro privatista e os liberais chegaram ao poder por dentro da máquina estatal que sempre atacaram.


Ciro tentou, mas Bolsonaro caiu do céu

Quando o Fórum da Liberdade de 2018 convidou Ciro Gomes para debater com Marina Silva e Sérgio Moro diante da nata do ultraliberalismo latino-americano, havia ali mais do que uma oportunidade de diálogo. Era uma tentativa de aproximação. Ciro sabia exatamente onde estava, num evento financiado por think tanks estrangeiros, com um público hostil a qualquer menção ao Estado, aos direitos sociais ou à soberania nacional. Ainda assim, topou. Talvez achasse que era possível convertê-los, como quem tenta plantar feijão em solo britado.

No mesmo evento, um encarte foi distribuído com propostas de alteração da Constituição brasileira, redigidas por integrantes do Institute of Economic Affairs, o mesmo que serviu de modelo para a criação da Atlas Network. A ideia era explícita: refundar o Estado brasileiro por dentro, segundo os interesses do mercado. Ciro participou do debate, mas o script já estava escrito. O evento servia mais para dar verniz de pluralismo ao que já era um pacto fechado. Sérgio Moro, o juiz messiânico da Lava Jato, foi tratado como estrela da noite. Bolsonaro nem precisou comparecer. Sua presença era dispensável, porque já havia sido ungido.

As revelações de Luan Brum e Jahde Lopez, com base nos documentos inéditos encontrados no Instituto Hoover, mostram que a escolha de Bolsonaro não foi fruto do acaso. Desde 2010, reuniões estratégicas da Atlas Network já delineavam o caminho: usar humor crítico, infiltrar jovens liberais em universidades, promover o “tax freedom day”, atacar o Plano Nacional de Direitos Humanos, gerar campanhas nas redes sociais e na mídia tradicional, treinar quadros e influenciadores para difundir a ideia de que o Estado é o inimigo e o mercado é a salvação. Quando as ruas explodiram em 2013, a estrutura já estava montada.

Ciro tentou ocupar um espaço que já não existia. Tentou dialogar com empresários, sem se entregar. Tentou defender o Estado, sem parecer estatista. Tentou ser racional, quando o jogo já era irracional. Enquanto explicava seu projeto de país com gráficos e detalhes técnicos, a extrema direita despejava memes, boatos e slogans. O mercado não queria um reformador, queria um executor. Não um desenvolvimentista, mas um desmantelador. E encontrou em Bolsonaro o fantoche perfeito.

O casamento entre o vazio programático do capitão e a agenda radical da Atlas foi selado por Paulo Guedes. Ele não era um acessório, era a garantia. O currículo de Chicago, os vínculos com o Millenium e a confiança dos financiadores internacionais bastavam. Bolsonaro oferecia o corpo, Guedes entregava a alma neoliberal. E Ciro ficou falando sozinho, num palco em que já era decorativo.

O Fórum da Liberdade foi o ensaio daquilo que se consolidaria meses depois: a direita se reorganizou, os militares reocuparam o Estado, e os liberais tomaram o controle da economia. Não houve disputa real. Houve encenação. Ciro tentou, mas Bolsonaro caiu do céu.


Brasil colônia de ideias

Com apoio de grandes corporações como ExxonMobil, Coca-Cola, Pfizer e Philip Morris, além da máquina filantrópica dos irmãos Koch, a Atlas Network e seus parceiros montaram uma verdadeira operação de guerra informacional. Financiavam eventos, traduziam livros, treinavam influenciadores e criavam legislações sob medida. Um dos principais documentos encontrados por Brum e Lopez relata uma conferência realizada na Flórida, em 1998, cujo objetivo era garantir que representantes da rede tivessem status de ONG e pudessem atuar nas COPs da ONU como se fossem ambientalistas. Uma dessas bolsistas foi Ana Lamas, hoje secretária de Meio Ambiente de Javier Milei.

A dominação não foi feita com tanques, mas com termos de adesão, publicações de opinião e influenciadores bem vestidos. O que a CIA e os marines fizeram nos anos 60, a Atlas, o NED e o CIP refinaram nas décadas seguintes. A operação é menos visível, mas muito mais eficiente: toma o Estado, sem que ele perceba que já foi tomado.


Um projeto transnacional de captura

As conexões com a Lava Jato, a demonização da Petrobras, o impeachment de Dilma e a ofensiva contra os direitos sociais fazem parte da mesma cartografia. A doutrina neoliberal se apresenta como técnica, mas age como ideologia. Disfarçada de “modernização”, promove destruição do Estado, pilhagem de riquezas e desmobilização popular.

Essa série de documentos é histórica por revelar a arquitetura dessa dominação. Mostra como os que se dizem defensores da liberdade operam como agentes da dependência. Mostra como os que falam em livre mercado atuam com subsídios estrangeiros. Mostra, sobretudo, que a soberania não se perde apenas com tanques ou embaixadas. Ela se dissolve quando as ideias dos outros passam a parecer nossas.

Em tempos de guerra híbrida, a desinformação tem pedigree e endereço. E a rua, ao contrário do que nos disseram, nem sempre é o lugar da verdade popular. Às vezes, é palco de quem soube pagar melhor o roteirista.


 
 
 

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