O planeta de Damares
- Sara Goes
- há 13 minutos
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O feto de plástico que Damares Alves ergueu na audiência da Comissão de Direitos Humanos do Senado ontem (14) não é um adereço isolado. Ele integra um ritual que Eduardo Girão repete há anos, desde os tempos em que percorria os gabinetes da Alece. O objeto atravessou sua trajetória política e se tornou um amuleto, uma extensão física de seu discurso. Em abril de 2023, no Senado, tentou entregar uma dessas réplicas, de 11 semanas, ao ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida. O gesto foi recusado com firmeza, e o ministro classificou a ação como performance e exploração inaceitável de um problema gravíssimo. A cena condensou em poucos segundos a lógica simbólica da extrema direita: transformar temas sensíveis em fetiches políticos, usar o afeto como escudo moral e converter o Parlamento em palco de dramaturgia religiosa.
Damares potencializa o uso desse artefato. Ao descrevê-lo minuciosamente diante das câmeras e afirmar que o aborto não se refere a um amontoado de células, transforma o confisco do objeto na entrada do plenário em narrativa de perseguição. A peça deixa de ser mera ilustração e passa a ocupar o lugar de relíquia censurada.
A retórica que sustenta o gesto é de vitimização controlada. A mulher que aborta é apresentada como enganada, sempre mãe e condenada a um luto permanente. É o mesmo mecanismo das campanhas eugenistas do início do século XX, em que a falsa compaixão justificava a retirada de autonomia sob o pretexto de proteção.
Na sequencia Damares abandona qualquer verniz de cuidado e estabelece um decreto definitivo: “Uma vez grávida, para sempre grávida. É regra da natureza. Se não quer gerar vida neste planeta, vá para outro planeta.” A suposta empatia se converte em banimento moral.
Essa lógica ilustra modo como o bolsonarismo administra mulheres com visibilidade. Joice Hasselmann, Carla Zambelli, Patrícia Lélis e Sara Winter foram exaltadas enquanto desempenharam funções convenientes, atacando adversários e reforçando narrativas. Todas, em momentos distintos, perderam utilidade e foram descartadas com violência política e pessoal. Sara Winter foi transformada de militante exaltada em inimiga pública. Patrícia Lélis foi exposta e desmoralizada após denunciar um estupro, sendo alvo de campanhas que a patologizaram falsamente e apagaram a gravidade da denúncia. Joice Hasselmann foi isolada. Carla Zambelli, mesmo mantendo um discurso alinhado à pauta bolsonarista, amarga o desprezo da famíliaque a mantém como algo descartável e sem acesso ao núcleo decisório.
Damares é tolerada porque não ameaça a centralidade de Jair Bolsonaro e cumpre o papel previsível de figura moral e religiosa, útil para reforçar a base ideológica e mobilizar setores evangélicos. Isso lhe permite atuar como madrinha política de Michelle Bolsonaro, abrindo portas, legitimando sua presença e fornecendo discurso pronto para agendas religiosas. A devoção de Damares por Michelle é tão intensa que é fácil imaginá-las dividindo um mundo deserto e cúmplice, onde expor a filha adolescente ao convívio de um homem que já declarou sentir atração por meninas da mesma idade fosse tão normal quanto ver o diabo em tudo.
E, em algum momento difícil de precisar, Damares passou a erguer um universo próprio, cuja origem e detalhes dispensam exame, seja pelo repúdio que inspiram, seja pela sensação de que nem ela acredita no que diz. É um planeta particular onde recicla hoaxes sexuais da deep web dos anos 2000, como as histórias sobre bonecas sexuais humanas ou a suposta rede de venda de meninas na Ilha de Marajó, local do qual já declarou querer ser princesa, para espalhar pânico moral e alimentar as próprias fantasias.
Este é o planeta de Damares, um território simbólico que mistura fantasia sexual e intimidação, com fronteiras rígidas para o papel da mulher e um método calculado para manter tudo sob seu controle. Quando a família Bolsonaro implodir o PL, ela entenderá o destino reservado a todas que deixam de servir: serão enviadas para “outro planeta”.
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