O maior erro de Trump
- Sara Goes

- 13 de ago.
- 4 min de leitura
Ao atacar lula, trump subestimou séculos de insubmissão, um sotaque que não abaixa a cabeça e o retorno simbólico do véi nordestino

Desde pequena, ouvi piadas que colocavam os nordestinos em contraste, como se cada estado tivesse um personagem próprio nesse enredo de provocações bem-humoradas. Sempre levei como parte daquilo que gosto de chamar de geopolítica nordestina, com seu jogo interno de ironias e afeto. Entre elas havia uma que nunca consegui repetir direito, porque sou péssima em guardar piadas. Era sobre um cliente escolhendo caranguejos para comprar, cada um representando um estado do Nordeste. Não lembro dos detalhes nem vale a pena reproduzir o desfecho depreciativo contra o Ceará e o Piauí, mas guardei a imagem do caranguejo pernambucano, aquele que tentava escapar o tempo todo, como símbolo de rebeldia e inconformismo.
Pois foi exatamente com esse caranguejo que Donald Trump resolveu brigar. Achando que enfrentava apenas um presidente, trombou com séculos de insubmissão, com a teimosia como herança política e com um sotaque que transforma ofensa em trincheira. Trump errou o tom, errou o alvo e errou o continente da lógica. Tentou impor tarifas e acabou tomando lição de soberania de um migrante nordestino que, mesmo sem diploma, já tem mais título honoris causa que arrogância imperial.
O brigão de dentro
Pernambuco não cria frouxo. E não é força de expressão. De lá saíram a Insurreição contra os holandeses, a Revolução de 1817, a Confederação do Equador, a Revolução Praieira. Briga em Pernambuco nunca foi só por briga, foi por autonomia, por dignidade, por chão. A luta por conta própria virou método e memória. Ali, resistir virou identidade coletiva. Ao longo dos séculos, o brigão pernambucano foi se refinando em revolução, em rima de cordel, em símbolo político. Até chegar em Lula.
Lula não é um brigão improvisado. Ele é o resultado direto desse acúmulo histórico. Filho de Dona Lindu, nascido na seca, embarcado em pau de arara, torneiro, líder sindical, criador de partido, presidente três vezes. Cada fase da sua vida foi uma disputa com quem dizia que ele não podia. E cada embate, uma reafirmação de que ele não largaria o fio da terra que o moldou.
Mas Lula é mais que isso. Ele é o retorno de uma entidade simbólica que se fortalece com o tempo: o véi nordestino.
O véi nordestino que mora longe mora dentro
O véi nordestino não é um verbete etarista para se referir a um idoso. É uma entidade. Um corpo que carrega dentro de si o tempo, a terra e a travessia. Ele não representa apenas uma fase da vida, mas um estado de pertencimento que se intensifica com a idade. É quando o tempo vivido fora faz o chão de origem mais forte por dentro. Lula é hoje essa entidade. O presidente que não se rendeu, não se perdeu, não se dissolveu na cidade grande. Ele migrou, lutou, governou, mas não largou o fio. E quanto mais o tempo passa, mais o povo vê nele o retorno daquele que partiu sem sair.
A migração nordestina carrega marcas profundas de injustiça histórica. Muitas vezes forçada pela seca e pelo abandono, ela estica um fio invisível entre o corpo que parte e a terra que permanece. Na velhice, esse fio vibra mais forte. O véi nordestino é essa tensão entre o passado e o presente. E Lula encarna isso com a precisão de quem jamais negou a voz rouca, a fala direta, o afeto explícito. Ele não disfarça. Ele carrega.
Outro dia, em Osasco, Lula disse com humor que os poderosos preferem seu vice: mais calmo, mais branco, mais “negociador”. “Ele não é rouco como eu, não é bravo como eu”. E ali estava o véi nordestino: sem filtro, sem media training, sem cosmético. O presidente que não quer parecer bonito de andador nem educado com agressor. Que fala grosso com império porque aprendeu cedo que, se abaixar a cabeça, botam a cangalha e você nunca mais levanta.
Trump deu com os cascos num mangue
Quando Trump impôs o tarifaço, achou que Lula viria choramingar, ou no mínimo pedir um chá de conversa. Mas o pernambucano, você sabe, quando escuta o barulho de ferro na porta, não vai se esconder. Vai pegar o facão do avô e começar a desenhar no ar o contorno da dignidade. E foi exatamente isso que Lula fez: não ligou, não implorou, não cedeu. Pegou a ofensiva e transformou em palanque, em plano, em plataforma internacional.
Enquanto Trump usava a linguagem binária da força, Lula falava de soberania, de memória, de comércio justo e de não aceitação do papel de subalterno. Evocou o golpe de 1964, falou da história, da dignidade, da falta de sentido econômico da medida. E ainda avisou que quem ia pagar a conta era o povo americano, que ia ficar sem picanha na grelha.
Na prática, lançou o Plano Brasil Soberano, mobilizou o BRICS, ativou a reciprocidade comercial. Transformou retaliação em oportunidade. O que parecia fraqueza virou pulso. Trump trouxe chumbo, Lula devolveu com engenharia institucional e sotaque arretado.
O erro fatal de Trump
Trump errou porque achou que enfrentava um político. Mas não era só isso. Era um presidente com sotaque, com biografia, com memória. Era o retorno simbólico do nordestino que sobreviveu ao pau de arara e agora comanda a diplomacia de uma nação. Um homem que representa o povo que foi humilhado e que agora fala alto porque tem quem escute.
Trump briga por ego. Lula briga por história. Trump fala para os seus. Lula fala com os nossos. E os nossos não esquecem. Porque, como diz Arnóbio Rocha, “você pode sair do Ceará, mas o Ceará nunca sai de você”. O mesmo vale para Garanhuns, para Serra Talhada, para o mangue e o sertão. Onde mora um véi nordestino, mora o chão. E esse chão caminha, governa, responde e não abaixa a cabeça.
No fim das contas, Trump tentou exportar dominação e importou vexame. E o pernambucano, aquele caranguejo rebelde da minha infância, saiu da gaiola, escapou das pinças e ainda fez piada. Porque briga com a gente não se ganha no grito, se perde no ridículo. E Trump, agora, vai ter que explicar para o mundo como foi que um véi nordestino virou a pedra no sapato do império.



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