O Brasil do melindre
- Paola Jochimsen
- 27 de mai.
- 4 min de leitura
Em um país onde tudo fere, pensar virou ataque e escutar virou ameaça. O que nos impede de crescer é o medo de ser contrariado

O brasileiro, conhecido por seu bom humor e simpatia, também revela, não raro, um lado bem mais suscetível e melindroso. Por trás da cordialidade aparente, há uma cultura profundamente enraizada de evitar confrontos, mais por medo de desagradar do que por apreço genuíno à diferença. O receio de ser considerado “grosseiro” ou “mal-educado” muitas vezes sufoca o debate sincero.
A crítica, nesse contexto, é rapidamente percebida como ataque pessoal. O que chamamos de melindre é justamente essa tendência a reagir com mágoa ou indignação desproporcional sempre que nos sentimos contrariados. Trata-se de uma sensibilidade exagerada, muitas vezes enraizada no orgulho, que transforma toda discordância em ofensa. Não é apenas uma questão de se magoar facilmente, mas de evitar o confronto de ideias por medo de parecer vulnerável. Não há espaço para o dissenso: discordar é ofensa, debater é afronta. Dentro da família, o tabu é ainda maior. Questionar tradições, religião, padrões ou decisões é interpretado como desrespeito, nem pensar. Tudo é levado, na maior parte das vezes, para o lado pessoal.
Essa dificuldade de lidar com a crítica começa cedo, dentro de casa. Desde pequenos, somos ensinados que questionar pais e avós é falta de respeito. Em muitas famílias brasileiras, não existe espaço real para o diálogo honesto, abafado por tradições religiosas rígidas ou por estruturas machistas que associam autoridade à infalibilidade. Frases como “manda quem pode, obedece quem tem juízo” e “enquanto você estiver debaixo do meu teto...” não são apenas ditos populares, elas são ferramentas poderosas de silenciamento emocional. Aprendemos a calar para evitar conflito, a evitar o pensamento autônomo para manter a “paz”. Crescemos com a ideia de que respeitar é obedecer, e escutar é se submeter. Assim, chegamos à vida adulta sem saber discordar e com medo de pensar diferente.
Esse comportamento, no entanto, não é novo. Ao longo do tempo, a literatura e o pensamento social brasileiros registraram e analisaram esse traço com profundidade crescente. No século XIX, José de Alencar, no romantismo nacionalista, desenhava personagens marcadas por um orgulho quase intransponível. Em Senhora, Aurélia Camargo conduz suas relações como um jogo de poder e melindre: prefere encenar um casamento de fachada a demonstrar vulnerabilidade. O perdão é difícil, o diálogo é evitado, e o ressentimento guia as ações. O que está em jogo não é o sentimento, mas a honra, ou melhor, a imagem da honra.
Na mesma época, Machado de Assis retratava com ironia fina o orgulho ferido e a vaidade frágil do brasileiro. Em Dom Casmurro, Bentinho não consegue lidar com suas dúvidas e inseguranças, cala, julga e pune silenciosamente, sem diálogo. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o narrador zomba da própria elite carioca, revelando uma sociedade profundamente preocupada com aparências e status, mas emocionalmente despreparada para a crítica e o contraditório.
Já no século XX, Sérgio Buarque de Holanda daria nome e densidade teórica a esse traço tão persistente do caráter nacional: o homem cordial. Em Raízes do Brasil, publicado em 1936, ele desmonta a ideia romântica de que o brasileiro é naturalmente “amável”. A cordialidade brasileira, segundo ele, não é sinônimo de boas maneiras, mas uma forma de agir movida pela emoção, o coração, em detrimento da razão. Como ele afirma, “o homem cordial é aquele que se guia mais pelos sentimentos do que pela razão”. Em vez de separar o público do privado, o brasileiro personaliza as relações sociais e se sente atingido quando alguém critica suas ideias. A crítica vira ofensa. O debate, ataque. A razão cede lugar ao ressentimento.
Nas redes sociais, esse traço ganha nova potência. Elas criaram um ambiente de constante exposição e validação emocional, em que o melindre se converte em identidade e engajamento. Cada opinião contrária parece uma provocação direta. Cada comentário vira um campo de batalha. A lógica do “curtir ou cancelar” alimenta uma cultura de extremos, onde pensar diferente é visto como traição pessoal ou afronta moral.
Na política, esse comportamento é visível tanto na base quanto na elite, embora com intensidades e motivações diferentes. Críticas a líderes políticos, principalmente da direita, são muitas vezes acompanhadas por reações agressivas, campanhas de desinformação e ataques pessoais. No entorno de Bolsonaro, por exemplo, jornalistas e opositores foram tratados como inimigos públicos por simplesmente exercerem seu papel crítico. Já no caso do governo Lula, embora existam críticas legítimas, muitas delas nas redes sociais assumem um tom desproporcional, alimentado por notícias falsas, distorções e teorias conspiratórias. A crítica vira pretexto para difamação. Nesses casos, não se busca aprimorar o debate público, mas desqualificar o adversário. O resultado é um ambiente em que o diálogo dá lugar a lealdades emocionais, e onde ideias valem menos do que paixões e ressentimentos.
A crítica honesta desaparece, na maioria das vezes, sob uma avalanche de prints, indiretas e cancelamentos. O debate real dá lugar a disputas, e quem discorda é rotulado ou silenciado. Raras são as exceções em que há escuta e troca genuína de argumentos. A vaidade ferida virou entretenimento coletivo e o resultado disso é um ambiente tóxico onde se premia o silêncio estratégico e se pune a fala franca.
Pensar exige coragem. Ouvir o que não queremos também. Mas sem esse exercício constante de desconstrução e reconstrução, ficamos presos a nós mesmos. O melindre nos torna menores: fecha portas, bloqueia escutas, empobrece relações. Quando não conseguimos mais debater sem nos ferir, resta apenas o silêncio dos ofendidos e o ruído dos que gritam para não pensar.
É preciso reaprender a discordar sem se desrespeitar. Nem toda crítica é ataque. Nem toda divergência é afronta. Nem toda ferida é real, muitas são apenas reflexos de egos frágeis demais para encarar o espelho. Se quisermos amadurecer como sociedade, o primeiro passo é aceitar que crescer dói. E que, às vezes, a verdade mais incômoda é justamente a que mais precisamos escutar.
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