Meus mais sinceros votos a Damares Alves
- Sara Goes

- 27 de ago.
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Atualizado: 27 de ago.
Eu venho de uma família em que, como ocorre com frequência no Nordeste, casamentos entre primos eram comuns e dessa herança, as doenças autoimunes se espalharam de forma persistente, atravessando gerações. Meu pai travou uma luta longa contra a doença autoimune e acabou falecendo em decorrência de um câncer, uma convergência comum em famílias como a minha. A despedida foi profundamente carregada de emoção, planejada, cheia de afeto e consciente. Mas doeu. Seis meses depois, minha mãe descobriu um câncer operável. E, poucos meses depois, recebi duas notícias na mesma semana: a descoberta da minha primeira gestação e o diagnóstico de câncer do meu companheiro. Perdi aquela gestação e mergulhei em uma depressão que se prolongou por três anos. Na segunda perda gestacional a única lição foi a crueldade: o Judiciário me arrancou o direito ao aborto legal e me condenou a carregar até a metade uma gestação já destinada à morte, um suplício inútil que não produziu nada além de prolongar e multiplicar a dor.
Nenhuma doença chega para ensinar algo, curar a alma ou moldar o caráter. O câncer não é metáfora, não é lição de vida. É a reprodução desordenada de células e não uma escola espiritual ou moral.
É justamente essa visão distorcida que orienta a atuação de Damares Alves. Quando ainda não era ministra, tentou impedir o aborto de uma paciente com câncer, negando-lhe o direito de decidir sobre a própria vida e sobre um tratamento que poderia lhe dar alguma chance. A mesma lógica esteve presente em sua cruzada política contra meninas vítimas de estupro, para quem pregava a continuidade da gravidez como penitência, reduzindo sofrimento a virtude e dor a via de redenção. Essa é a teologia do sofrimento que sempre defendeu: uma crença cruel de que a dor purifica, de que o padecimento é pedagógico, de que a vida deve ser moldada pelo sacrifício.
Agora, ao anunciar publicamente que está com câncer, Damares repete a liturgia dessa doutrina, evocando fé, sacrifício e provação, como se a doença fosse destino espiritual e não a brutalidade material de células que se rebelam contra o corpo. Ao contrário do que ela faz com outras pessoas, acredito que ela tem o direito de ler o câncer como bem quiser e escolher um caminho menos doloroso para enfrentar esse momento.
Também não cabe da minha parte desejar boa recuperação ou êxito no tratamento. Desejo que Damares receba, em dobro se possível, o que impôs às meninas que estiveram sob sua mira e às mulheres que como eu foram vítimas colaterais de sua doutrina.



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