Lute como uma mãe que não esquece
- Sara Goes

- 1 de set.
- 4 min de leitura

A memória é um campo de batalha. E a justiça, uma trincheira que não se abandona. Para um grupo de mulheres da Grande Messejana, em Fortaleza, essa luta se renova a cada dia, há quase uma década. Em novembro de 2025, a Chacina do Curió completará dez anos, mas a ferida segue aberta, latejando com a notícia mais recente: a absolvição, em agosto, de sete policiais acusados de omissão. A contagem da impunidade, para elas, é tão dolorosa quanto a das perdas.
Na madrugada de 11 para 12 de novembro de 2015, a periferia de Fortaleza foi palco da maior matança de sua história. Onze pessoas, a maioria jovens, foram executadas sumariamente, e outras sete ficaram feridas. A tese da acusação, sustentada pelo Ministério Público, aponta para uma vingança orquestrada por policiais militares após a morte de um colega de farda horas antes. Foi uma noite de terror, com carros sem placas, homens encapuzados e um rastro de sangue que manchou para sempre as ruas dos bairros Curió, São Miguel, Alagadiço Novo e Lagoa Redonda.
Da dor incomensurável da perda, nasceu o movimento "Mães do Curió". Mulheres que transformaram o luto em um megafone, exigindo o que lhes é de direito: memória, verdade e justiça. Elas enfrentaram um longo e sinuoso percurso judicial. Dos 30 policiais levados a júri popular, apenas seis foram condenados até hoje. Vinte e um foram absolvidos, e o último julgamento está marcado para este mês de setembro. A cada absolvição, a luta se redobra. Elas organizam atos, buscam a imprensa, fiscalizam o poder público e se recusam a deixar que a história de seus filhos seja apagada ou reduzida a uma estatística da violência urbana.
O grito que atravessa gerações
O grito das Mães do Curió, no entanto, não é solitário. Ele se conecta a uma genealogia de movimentos de maternidade que, no Brasil e na América Latina, se organizaram politicamente a partir da violência de Estado. São coletivos majoritariamente ligados a pautas da esquerda e dos direitos humanos, que universalizam sua dor pessoal em uma agenda de proteção para todos.
As Mães de Maio, em São Paulo, são um espelho quase perfeito. Nascidas após os "Crimes de Maio" de 2006, quando centenas de jovens foram executados em uma retaliação de agentes do Estado a ataques de uma facção criminosa, elas também lutam contra a violência policial que vitimiza a juventude negra e periférica em plena democracia.
Essa tradição de luta vem de mais longe. Durante a Ditadura Militar, o Movimento Feminino pela Anistia, liderado por figuras como Therezinha Zerbine, foi pioneiro ao ocupar o espaço público para exigir a anistia "ampla, geral e irrestrita", tornando-se uma força decisiva no processo de redemocratização. Na Argentina, as Avós da Praça de Maio inovaram ao usar a ciência e o afeto como armas, criando um banco de dados genéticos para localizar cerca de 500 netos sequestrados pelo regime militar, conseguindo restituir a identidade de 140 deles até hoje.
Mais recentemente, a pandemia de Covid-19 fez surgir as "Mães da Pandemia", organizadas em associações como a "Vida e Justiça". Elas perderam seus filhos não para a bala do Estado, mas para o que o relatório final da CPI da Pandemia classificou como crimes de responsabilidade, omissão e desinformação deliberada do governo. A luta delas amplia o conceito de violência estatal, incluindo a negligência na saúde pública como uma forma de extermínio.
Em todos esses casos, a maternidade é o ponto de partida para uma ação política coletiva. A experiência da perda se politiza e se volta contra o sistema que a produziu, exigindo responsabilização e mudanças estruturais para que outras mães não chorem a mesma dor.
A maternidade como amuleto moral
Se de um lado a maternidade se forja como ferramenta de luta coletiva por direitos, de outro, em setores da extrema-direita, ela é mobilizada como um escudo, um totem e um amuleto moral. Não se trata de organização coletiva para reivindicar justiça, mas do uso de exemplos pessoais como plataforma para validar uma agenda política conservadora.
Em diferentes episódios recentes, essa estratégia ficou evidente: a maternidade foi apresentada como gesto de salvação individual em disputas sobre adoção, como recurso propagandístico em meio à pandemia ou ainda como acessório performático em atos políticos de confronto. Em todos os casos, o sentido de maternar é deslocado para um plano de autoafirmação, mais voltado a blindar a imagem de lideranças do que a construir proteção para o conjunto da sociedade.
Enquanto as Mães do Curió, de Maio e da Pandemia se organizam para proteger os filhos da sociedade da violência do Estado, esse uso simbólico da maternidade no campo conservador mostra um movimento inverso: a utilização dos próprios filhos para proteger uma agenda política. De um lado, a maternidade socializada, que chora e luta no coletivo. De outro, a maternidade individualizada, que se exibe como totem de virtude moral. A disputa, no fundo, é sobre o próprio sentido de maternar em um país tão desigual e violento: se ele serve para libertar e proteger a todos ou para legitimar e blindar a si mesmo.



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