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Laranja a gente come

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“Em uma enseada, junto a este rio… sucedeu o triste desastre do naufrágio do bispo D. Pedro Fernandes Sardinha… foi cativo dos índios caetens, cruéis e desumanos, que conforme o rito da sua gentilidade, sacrificaram à gula, e fizeram pasto de seus ventres, não somente aquele santo varão, mas também a cento e tantas pessoas, gente de conta, a mais dela nobre…”


A cena descrita por Simão de Vasconcellos atravessou séculos como alegoria da ruína colonial. Um bispo da coroa, convicto de sua autoridade espiritual e política, naufraga no litoral do Brasil e é tragado por um povo que não se curvava. O corpo do enviado de Deus vira metáfora de um império ferido por aqueles que recusavam a catequese, o escambo e a sujeição. Mas o que foi lido como selvageria, talvez tenha sido só resposta. Vingança, não gula. E o que a colônia interpretou como castigo, os nativos talvez tenham compreendido como justiça.


Hoje, a figura de Dom Pedro Fernandes Sardinha paira como fantasma sobre outro episódio, este global, digital e tarifário. Não naufragou uma nau, mas uma tentativa de imposição imperial. E o nome do protagonista atende por Donald J. Trump.


Trump, como Sardinha, também parte de um lugar de privilégio, certo de sua superioridade, cercado por seus homens de confiança e convencido de que bastaria apontar o dedo para que o mundo se curvasse. Lança um tarifaço de 50% contra as exportações brasileiras, talvez esperando que o Brasil do século XXI agisse como colônia disciplinada. Mas não contava com a ressurgência de uma soberania impaciente, forjada nos sertões, nas redes e nas instituições que, mesmo atacadas, resistem. Não havia mais bispo para ser devorado, mas há uma nação que, de tempos em tempos, mostra os dentes.


A história ainda não decidiu se Trump será engolido, negociado ou resgatado por alguma caravela mercantil disfarçada de acordo bilateral. Ao contrário do bispo, ele tem mais recursos, mais armas, mais algoritmos e uma legião de aliados infiltrados até o osso das nossas instituições. Mas o erro é o mesmo, subestimar os nativos. Porque, ao contrário da imagem que o império forja, o Brasil aprendeu a sobreviver a naufrágios. E mais, aprendeu a transformar a ruína em linguagem, resistência e estratégia.


Trump age como se ainda estivesse lidando com o Brasil de 2019, quando bastava pressionar para obter submissão. Mas o gesto arrogante de erguer tarifas contra o país pode virar contra ele o próprio ritual. Não será um castigo para alimentar o inimigo, mas o sinal de uma memória viva que recusa a domesticação. A vingança, aqui, não é bárbara, é política. E a soberania, agora, se escreve em outros termos: nas políticas minerais, nas defesas do Pix, na regulamentação das big techs, no discurso popular e no Nordeste logístico que já não aceita o apagamento. Nesse jogo, o bispo já não é santo varão, é símbolo de uma arrogância punitiva que perdeu a aura. Trump ainda flutua sobre as águas turvas de um acordo, mas se escorregar demais, não faltará litoral rebelde para puxá-lo.


Trump ainda não naufragou. Pode muito bem costurar acordos, recalibrar tarifas, operar seus jogos de aproximação seletiva na América Latina e repetir a velha tática de punir em bloco enquanto premia em partes. Mas já não pisa em território passivo. Enfrenta um governo que aprendeu a negociar com altivez, uma sociedade que rejeita a pedagogia da humilhação, intelectuais que desnudam as engrenagens da dominação e um Nordeste que se recusa a servir de escudo para interesses que não são seus. Assim como no passado um povo foi acusado para justificar um massacre e consolidar a narrativa de poder, agora tenta-se deslocar o centro do conflito para preservar a velha lógica da submissão. Mas o país já entendeu o jogo. E desta vez, não aceitará o lugar de culpado nem o silêncio do vencido.

 
 
 

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