top of page

Entre soluços e anistia

A imagem de força que sustentou Bolsonaro desmorona diante da realidade de um corpo em colapso, e sua biografia política caminha para o mesmo destino: obstrução, refluxo e silêncio



A trajetória recente de Jair Bolsonaro não pode ser entendida sem a chave do corpo. Desde a chamada facada de 2018, seu abdômen carrega uma cicatriz que não fecha, reaberta por cirurgias sucessivas e pela recusa de uma solução definitiva: a bolsa de colostomia. Essa recusa não foi apenas médica, foi também política, porque admitir a bolsa significaria renunciar à imagem de atleta, de homem viril e invulnerável.

O resultado clínico é devastador. As aderências intestinais, típicas de quem passa por múltiplas intervenções, provocam obstruções frequentes. O intestino distendido irrita o diafragma, produzindo soluços incessantes que tomam dias e noites, impedem o repouso e agravam o desgaste. O estômago, incapaz de reter alimentos, devolve em vômitos recorrentes o que não consegue digerir. O sangue se perde em pequenas doses ou na dificuldade de absorção, instalando a anemia. O corpo que antes servia de vitrine para a força agora se reduz à rotina de síncopes, quedas de pressão, náuseas e exaustão.

Nas fases mais graves, a obstrução intestinal não apenas interrompe o trânsito: ela transforma o próprio corpo em prisão. O alimento e os resíduos se acumulam e retornam pelo caminho inverso. O que o estômago expulsa tem cheiro e aspecto de fezes. O termo técnico é vômito fecaloide, e para qualquer clínico é um sinal de emergência absoluta. É o corpo clamando que não há mais saída, que tudo reflui, que a máquina não sustenta mais a narrativa de vitalidade.


Na Papuda

Se fora do cárcere Bolsonaro já depende de fluxos contínuos de hospitalização, dentro do presídio da Papuda o prognóstico é ainda mais sombrio. Ali, a saúde funciona em núcleos básicos, com enfermaria e consultas de rotina, mas para quadros como obstrução intestinal, perfuração ou sepse, é preciso remoção escoltada a hospitais do Distrito Federal. Em um sistema marcado por superlotação e limitações logísticas, atrasos de horas ou dias podem significar a diferença entre uma cirurgia salvadora e a morte por infecção generalizada.

A idade próxima dos 70 anos agrava os riscos. Cada obstrução, cada vômito prolongado, cada queda de pressão aumenta a fragilidade cardiovascular e renal. Em vez do atleta que corria nos quartéis, a Papuda pode testemunhar um homem dependente de sondas, bolsas, hidratação intravenosa e repetidas transferências emergenciais. O cárcere, que deveria ser punição política, torna-se também cenário de exposição de uma biografia corporal que implode.



O atleta e o cadáver adiantado

Bolsonaro sempre vendeu a imagem de vigor. O capitão paraquedista, o político maratonista de lives, o homem que encarnava a virilidade como contraste com a “fraqueza” alheia. Esse foi o mito entregue ao eleitorado que o seguiu em transe.

Mas a carne é insubornável. O abdômen operado, recusando a colostomia, devolve hoje a metáfora de um país que não quis olhar para a realidade: em vez de cicatrização, obstrução; em vez de vitalidade, refluxo; em vez de potência, soluços e vômitos. A cada síncope, a cada anemia, o mito se esfarela.

É nesse ponto que Bolsonaro se divide em dois personagens. De um lado, a imagem vendida: o atleta eterno, disciplinado, incorruptível pela fragilidade. De outro, o corpo real: apodrecido, dependente, isolado, condenado a regurgitar o que nunca digeriu. Não há diálogo possível entre essas dimensões. Há silêncio, e nele ecoa a solidão do fim, o fim da vida política e, talvez, da própria vida.

A política também se escreve na carne. O bolsonarismo alimentou-se do corpo do chefe como símbolo de potência, mas agora confronta a ruína física de seu ídolo. No lugar do guerreiro, um organismo falido. No lugar do atleta, um cadáver adiantado. O mito não cai apenas nas urnas ou nos tribunais. Cai também no intestino que se fecha, no estômago que devolve fezes, na realidade bruta de uma biografia marcada pela recusa em assumir as próprias consequências.


Entre a anistia e a eutanásia

Aplicada a Jair Bolsonaro, a analogia entre anistia e eutanásia revela um jogo cruel entre política e biologia. Sua trajetória atravessa as duas esferas: de um lado, o corpo em colapso que pede um fim digno ao sofrimento; de outro, a biografia política que busca o perdão para escapar da justiça.

A anistia surge como expediente jurídico-político que interrompe a marcha da responsabilização. Apaga crimes em nome da reconciliação nacional, mascara feridas históricas e suspende o conflito para que a narrativa da ordem se imponha. No caso de Bolsonaro, a anistia seria o recurso da elite para encerrar o julgamento de sua ofensiva contra a democracia. Seria decretar que nada houve, que os mortos da pandemia, o assalto às instituições e a trama golpista devem ser esquecidos em nome da paz.

A eutanásia, em contrapartida, opera no terreno da vida nua. É a decisão de suspender o sofrimento quando não há retorno, quando a dor é insuportável e a cura, improvável. É o corpo que se impõe sobre a ideologia, clamando pelo alívio. No caso de Bolsonaro, a eutanásia é metáfora: o abdômen cheio de aderências, os soluços que não cessam, o vômito fecaloide, a anemia e os desmaios constantes. É o organismo que, recusando a colostomia, pede o fim do suplício.

O elo entre essas duas dimensões é a lógica do corte. A anistia corta a história, a eutanásia corta a vida. Ambas buscam atalhos diante do insuportável: uma em nome do poder, outra em nome do corpo. Mas há uma diferença ética fundamental. Enquanto a anistia serve aos algozes, perpetuando a impunidade e apagando os rastros da violência, a eutanásia serve à vítima, interrompendo a dor quando não há mais esperança.

Bolsonaro habita esse paradoxo. Sua classe política almeja a anistia para blindá-lo do tribunal da democracia. Seu corpo, debilitado, parece clamar por uma eutanásia simbólica, um fim para a agonia que nega tanto quanto produziu. Entre os soluços e as manobras regimentais, entre o vômito e os discursos de seus defensores, há a mesma recusa em enfrentar as consequências: seja o organismo que rejeita a bolsa de colostomia, seja o ex-presidente que rejeita a responsabilidade por meio milhão de mortes.

No limite, a anistia é a eutanásia da justiça. Se concedida, mata-se a possibilidade de reparação, sufoca-se a chance de memória, interrompe-se a vida da democracia em nome de uma paz artificial. E, como no corpo enfermo, o refluxo sempre retorna: aquilo que não é digerido volta à boca da história.

 
 
 

Posts Relacionados

Ver tudo

Comentários


at1.jpg
codigoaberto.png

<código aberto> é uma plataforma coletiva de pensamento crítico, voltada à análise dos conflitos contemporâneos a partir de perspectivas políticas, estéticas e informacionais. 

📲 Pix: codigoaberto.net@gmail.com 
Obrigado por caminhar conosco.
O futuro precisa de pensamento livre.

A Rádio e TV Atitude Popular é mais do que um veículo de comunicação; é uma voz comprometida com a democratização das informações e o combate às fake news. Seu compromisso é com a verdade, a pluralidade de vozes e a promoção de um espaço onde todos tenham a oportunidade de se expressar livremente.

📺 Ao vivo em: https://www.youtube.com/TVAtitudePopular
💚 Apoie a comunicação popular!
📲 Pix: 33.829.340/0001-89

bottom of page