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Educar para hesitar: contra o silêncio suave das máquinas

Por Reynaldo Aragon e Wanderley Anchieta

Vivemos tempos onde tudo flui, e quase nada permanece. A promessa da era digital foi liberdade, mas o que se ergueu diante de nós foi outra coisa, uma arquitetura invisível que antecipa nossos gestos, terceiriza nossas decisões e suaviza a dominação até que ela se torne confortável. Este ensaio convida o leitor a encarar de frente a lógica da fricção zero, os algoritmos que pensam antes de nós e os metaintermediários que reescrevem nossas subjetividades no silêncio da conveniência.

Um mundo sem atrito não é um mundo livre

Talvez seja fácil demais viver hoje, e talvez isso seja o maior perigo.

Aos poucos, quase imperceptivelmente, o mundo tornou-se um deslizamento. Basta um gesto, um toque, um olhar, um murmúrio para que algo aconteça. Pedimos comida sem falar, compramos sem escolher, amamos sem hesitar. Vivemos, cada vez mais, num regime de imediatismos cuidadosamente coreografados por sistemas que não vemos, não compreendemos e, no entanto, obedecemos.

Chamam isso de progresso, mas o que se perde quando tudo se torna simples?

Num tempo em que a fluidez é um imperativo moral, a fricção foi transformada em falha. Questionar é lentidão, duvidar é atraso. O erro, agora, é inadmissível. O silêncio, desconfortável. A hesitação, sintoma de ineficiência. Vivemos a era da otimização ontológica, onde até o pensamento deve caber no tempo de uma notificação.

Não é apenas a velocidade que mudou. Mudou o que significa agir, mudou o que significa decidir e, sobretudo, mudou o que significa ser livre.

O que nos oferecem não é liberdade, é a ilusão de autonomia sem a responsabilidade da escolha. A liberdade que exige pausa, esforço, contradição, desapareceu sob a camada sedosa de interfaces responsivas. Substituímos a deliberação pela delegação, trocamos o tempo da dúvida pela resposta preditiva, entregamos nossas decisões antes mesmo de percebê-las como nossas.

Essa é a lógica da fricção zero, uma ideologia técnica que se apresenta como conveniência, mas opera como apagamento. Ela não só remove barreiras operacionais, remove também o espaço simbólico do conflito. Remove a linguagem enquanto elaboração, a dúvida enquanto força dialética, a lentidão enquanto tempo da consciência.

Mas a história nunca foi feita sem atrito.

Foi a dúvida que fundou a filosofia, foi o erro que moveu a ciência, foi o silêncio que precedeu o grito. Toda experiência verdadeiramente humana contém em si o direito de hesitar, de resistir, de interromper.

Por isso, neste ensaio, sustentamos que a regulação das plataformas e a soberania informacional não são apenas pautas tecnológicas, são a nova luta de classes. E que só uma educação libertadora (que recupere o valor político do atrito) poderá resgatar o sujeito da interface e restituir-lhe a possibilidade da escolha.

Num tempo em que algoritmos pensam por nós, educar será ensinar a sentir novamente, reaprender o gesto de interromper, de pensar contra a corrente, de ser (mesmo quando ser se tornou disfuncional).

Porque um mundo sem fricção talvez funcione perfeitamente, mas um mundo que funciona perfeitamente é um mundo sem sujeitos.

A ideologia da fricção zero: o conforto como armadilha ontológica

Há um império que não se vê, mas se sente. Ele não declara guerras, não envia exércitos, não ergue muralhas. Prefere seduzir pela suavidade, convence sem falar e vence, sempre, pela aparência da neutralidade.

Esse império atende por muitos nomes, “otimização”, “eficiência”, “experiência do usuário”, mas seu verdadeiro nome (ideológico, técnico e histórico) é fricção zero.

No início, parecia apenas uma promessa prática, eliminar etapas, reduzir cliques, agilizar tarefas. Quem poderia se opor a isso? Mas a técnica nunca é só técnica. O que começou como conveniência virou critério moral, e o que era um ajuste de interface tornou-se uma reengenharia da existência. A fluidez passou a ser exigência ontológica. Tudo que atrasa, resiste, complica, hesita precisa ser eliminado.

A fricção (que durante séculos representou o espaço do pensamento, do conflito e da liberdade) foi convertida em disfunção. O ruído virou falha, a dúvida virou erro, a lentidão virou ameaça.

O que emerge daí é mais que um novo modelo de negócios. É uma nova forma de dominação. Porque ao eliminar o atrito, elimina-se também o tempo do sujeito. E sem tempo, não há política. Sem conflito, não há consciência. Sem resistência, não há liberdade.

No capitalismo industrial, a luta era pelo corpo. No capitalismo digital, é pela mente. A ideologia da fricção zero não disciplina pelo trabalho, modela pelo desejo. Ela não exige obediência, ela entrega prazer. Não comanda, recomenda. Não impõe, antecipa.

E é exatamente por isso que é tão perigosa.

Sob sua superfície lisa, esconde-se uma lógica brutal, tudo que é lento, plural, contraditório ou incerto será descartado. É a gramática perfeita da era da positividade tóxica, um mundo sem negações, sem pausas, sem conflitos, um mundo onde toda diferença é um ruído a ser calibrado.

Mas a história, como a consciência, só existe onde há tensão. Só há transformação onde há atrito. E a ideologia da fricção zero não transforma, ela adapta. Em silêncio, ela nos reescreve para cabermos nas previsões que ela mesma fez.

Essa é sua genialidade perversa, ela antecipa para impedir. Antes que a escolha se forme, ela já foi sugerida. Antes que o pensamento amadureça, já foi resolvido. Antes que o sujeito se reconheça, já foi traduzido. A fricção zero não responde ao desejo, ela o forma.

Por isso, denunciá-la é urgente, não por nostalgia de um mundo analógico, mas por compromisso com o que ainda pode ser humano.

Ao abolir o incômodo, o capitalismo da fricção zero não nos libertou da dor, nos sequestrou da experiência. E com isso, nos impede de transformar o mundo porque nos impede de habitá-lo plenamente.

É contra essa anestesia ontológica que precisamos reaprender o atrito.

O metaintermediário (a máquina que decide por nós antes de sermos nós)

Há uma nova entidade no mundo. Ela não possui rosto, nem corpo, nem voz, mas está em todos os lugares. Ela nos escuta sem que a chamemos, nos responde sem que perguntemos, nos conhece antes que nos reconheçamos. E, ainda assim, se apresenta como neutra, técnica, útil.

Essa entidade é o metaintermediário algorítmico, não apenas uma ponte entre sujeitos e informações, mas uma arquitetura invisível de antecipação e captura da subjetividade.

O metaintermediário é mais do que uma plataforma, é uma forma de governo. Ele opera como órgão preditivo da realidade, uma máquina que mede, calcula, classifica e prevê antes que possamos agir. Seu poder não se instala por repressão, mas por adesão. Não impõe, modela. Não argumenta, sugere.

E porque sugere, não parece ameaçador.

Na aparência, tudo é leve: recomendações personalizadas, filtros inteligentes, atalhos úteis. Mas por trás dessa curadoria generosa há um projeto muito mais profundo, transformar o mundo num espelho do que fomos, não do que poderíamos ser. O metaintermediário não abre possibilidades, ele as fecha antes que existam.

Se a modernidade acreditava no sujeito como centro da razão, a era do metaintermediário inverte o eixo, agora é o sistema que racionaliza o sujeito. Cada gesto, cada clique, cada ausência torna-se dado. E cada dado é insumo para prever o próximo passo. Vivemos dentro de um loop de antecipações, onde ser é continuar sendo aquilo que já fomos.

A alienação, aqui, não é mais a separação entre o trabalhador e seu produto. É a cisão mais radical entre o sujeito e seu próprio processo de constituição. O metaintermediário sequestra o tempo da formação. E ao fazer isso, ele interdita o devir.

Essa é a nova forma superior de alienação: a preempção da subjetividade. Quando tudo que fazemos já foi previsto, nada que fazemos é, de fato, escolha.

A tragédia é silenciosa. Continuamos nos movendo, clicando, escolhendo. Mas o campo de possibilidades já foi previamente mapeado. O “livre-arbítrio” tornou-se uma simulação cuidadosamente roteirizada. A interface sorri. O código observa.

E assim, a subjetividade torna-se um produto residual de sistemas de recomendação, um sintoma, e não uma origem, uma consequência, e não uma decisão.

É preciso dizê-lo com todas as letras, o metaintermediário é a nova forma de dominação de classe. Não mais centralizado como o capital industrial, mas onipresente como o oxigênio de uma bolha. Ele não precisa convencer, ele precisa apenas funcionar melhor do que o tempo que o sujeito teria para pensar.

Contra isso, educar é reaprender o intervalo, a pausa entre estímulo e resposta, o espaço entre dado e sentido, a hesitação como rebelião.

Porque só no espaço entre o desejo e a ação é que o sujeito pode, enfim, deixar de ser previsto e tornar-se real.

Soberania informacional (a nova luta de classes)

O mundo sempre foi organizado por cercas. Antes de serem erguidas no campo, elas foram desenhadas no discurso. E hoje, no silêncio cintilante dos datacenters, assistimos à construção da mais sofisticada de todas, a cerca algorítmica.

Não se trata mais de propriedade da terra, mas da linguagem, do desejo, do tempo. Trata-se de quem possui os meios de produção da atenção, de quem administra os circuitos onde a realidade se forma. O domínio informacional tornou-se o campo central da luta de classes, e essa luta já começou, ainda que muitos não tenham percebido.

As grandes plataformas não são ferramentas, são infraestruturas cognitivas, sistemas normativos, ambientes ideológicos. Elas não apenas organizam informações, elas organizam os mundos possíveis. Elas não apenas mostram a realidade, decidem o que conta como real.

A velha utopia digital de democratização do saber deu lugar à economia do sequestro da consciência. Sob o brilho da inovação, opera-se uma engenharia minuciosa de captura da linguagem, da memória, da experiência e da imaginação. A alienação, agora, é ontológica, não nos tiram apenas o fruto do trabalho, mas a possibilidade de nomear o mundo com nossas próprias palavras.

Não estamos diante de uma crise de privacidade. Estamos diante de uma crise de soberania epistêmica.

E é aqui que a questão se torna radical, quem não domina a infraestrutura da linguagem não governa seu próprio destino. A regulação das plataformas digitais, portanto, não é um detalhe técnico, é o novo terreno da emancipação histórica. Lutar pela soberania informacional é lutar para que a vida coletiva não seja gerida por mecanismos de predição privatizados.

É preciso compreender, os algoritmos não apenas distribuem informações, eles distribuem poder. E o poder, como sempre, não é neutro. Ele seleciona. Ele exclui. Ele silencia.

O proletariado do século XXI é aquele que não tem controle sobre os dados que gera, nem sobre os mundos que esses dados criam. Ele vive, mas não define os termos de sua própria experiência. Ele fala, mas não escolhe as palavras.

Frente a isso, o que está em jogo não é apenas a regulação econômica dessas corporações. É a reconquista da capacidade humana de produzir sentido fora da lógica da antecipação algorítmica. É o direito de narrar o mundo, de hesitar diante da resposta pronta, de duvidar da sugestão personalizada.

É por isso que não existe soberania popular sem soberania informacional. E não existe soberania informacional sem uma revolução cultural que restitua ao povo o direito de pensar com seus próprios instrumentos (e não com os atalhos fornecidos pelas interfaces).

Nesse sentido, a luta contra a dominação algorítmica é a forma contemporânea da luta de classes, uma luta travada no plano da linguagem, da cognição, da sensibilidade. E, como em todas as lutas históricas, ela exigirá organização, consciência e uma nova pedagogia da resistência.

Educar para hesitar (o retorno da fricção como prática libertadora)

Se a máquina antecipa, precisamos reaprender o gesto de adiar.

Hesitar, hoje, é um ato subversivo. É dizer não à urgência do clique, ao conforto da resposta certa, à anestesia da sugestão automática. Hesitar é interromper a engrenagem que gira em silêncio dentro da nossa cabeça.

A luta não será vencida com firewalls, mas com linguagem. Não será vencida com software, mas com sujeitos. O que está em disputa é a capacidade de dizer "eu não sei" diante de um mundo que exige certeza a cada segundo.

É por isso que a educação libertadora não é apenas necessária, ela é urgente. Mas não uma educação bancária, moralista, domesticada. O que precisamos é de uma pedagogia da fricção, uma prática que reensine o corpo a suportar a dúvida, o espírito a suportar o tempo, a mente a suportar o outro.

Ler um texto difícil. Ficar desconfortável com uma ideia. Escutar sem interromper. Revisar uma crença. Essas são, hoje, formas de rebelião.

Porque é preciso reaprender a ler, a escrever, a esperar. A liberdade começa onde a pressa termina.

A pedagogia de Paulo Freire nunca foi um método, foi um levante. Um gesto que dizia “tu podes pensar o mundo, porque tu estás no mundo”. E hoje, quando o mundo está cada vez mais predefinido por sistemas de antecipação, reafirmar a possibilidade do pensamento é recusar o destino algorítmico.

Educar, neste século, será preparar o sujeito para resistir às certezas vendidas por feed, para desconfiar das palavras que se oferecem fáceis demais, para demorar onde todos passam rápido.

O novo letramento não é apenas digital, informacional, midiático ou algorítmico. Ele é ontológico. É o letramento do tempo, do gesto, da contradição. Um letramento que forme consciências que não apenas leem o mundo, mas que saibam também reescrevê-lo.

Não nos bastam mais técnicas de alfabetização para operar interfaces. Precisamos de estratégias de emancipação para desativar os comandos invisíveis que moldam nossa subjetividade. Precisamos de um letramento que seja, ao mesmo tempo, escudo e lâmina, que proteja do ruído e corte a mentira.

Educar, enfim, será criar mundos onde ainda seja possível dizer não. Onde ainda seja possível hesitar. Onde ainda seja possível pensar antes de agir, e existir antes de ser previsto.

Não queremos um mundo mais fácil. Queremos um mundo mais nosso

Talvez o maior truque do poder contemporâneo tenha sido nos fazer desejar o que nos enfraquece. A leveza que anestesia. A personalização que isola. A conveniência que desarma. Fomos levados a acreditar que a liberdade é leve, mas a verdadeira liberdade pesa.

Ela exige pausa. Exige memória. Exige conflito. Ser livre é ser difícil.

E por isso, talvez, tenhamos nos tornado tão dóceis. Porque a dificuldade passou a parecer fracasso. A lentidão virou vergonha. O silêncio, falha de sistema.

Mas há um tempo que não cabe nas plataformas. Há gestos que não se dobram ao algoritmo. Há perguntas que não cabem em nenhuma resposta automática. É nesse intervalo (curto, frágil, mas infinito) que vive o que ainda é humano.

A urgência agora é reaprender a habitar esse intervalo. Reivindicar o desconforto como direito. Recuperar o tempo da palavra como campo de luta. Forjar novas literacias que não apenas decifrem o código, mas recusem o script.

Precisamos educar como quem desarma uma bomba, porque é isso que está em jogo. A soberania informacional não é um projeto técnico, é uma revolução cultural pela sobrevivência da consciência.

E essa revolução começa de forma quase imperceptível, com um gesto, um desvio, uma pergunta sem resposta. Um sujeito que hesita onde todos deslizam. Um corpo que interrompe o fluxo. Uma criança que aprende a duvidar do que a tela mostra.

Não queremos um mundo mais fluido. Queremos um mundo que se possa sentir. Um mundo que doa, que friccione, que exija (e que, por isso) nos devolva inteiros.

Porque o futuro não será decidido por quem clica mais rápido. Será decidido por quem ousar ser mais lento, mais profundo, mais difícil e, sobretudo, mais livre.

E a liberdade, como tudo que importa, nunca será um atalho.

Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global.


Wanderley Anchieta é pesquisador de Pós-Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM-UFF) com bolsa FAPERJ Nota 10. Desenvolve pesquisas sobre narratologia, ficção e dramaturgia concentrado nos personagens em suas fecundas interações com seus narradores, idem na relação entre narratividade e progressão das histórias, desinformação e mitos. É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI).


 
 
 

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