Bolsonaro tinha razão
- Sara Goes
- 1 de nov. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 7 de nov. de 2024

Por mais desconfortável que seja admitir, Jair Bolsonaro, com suas falas cruas e frequentemente repulsivas, tocou em uma realidade que muitos preferem ignorar. Em 2019, ao dizer que empregadores veem as mulheres como um “peso”, principalmente em razão da licença-maternidade, ele deu voz a um pensamento que permeia o mercado de trabalho – inclusive entre aqueles que se consideram progressistas. Suas palavras podem ter sido horrendas, mas revelam um dilema enfrentado diariamente por empregadores e, pior ainda, pelas próprias mulheres que precisam equilibrar carreira e maternidade em um ambiente corporativo que não facilita essa escolha.
Bolsonaro não estava falando de uma exceção. Quando ele mencionou o receio dos empregadores em contratar mulheres em idade fértil, ele estava expondo um temor real, presente mesmo nas empresas que se consideram defensoras da igualdade de gênero. De acordo com a Fundação Getúlio Vargas, quase metade das mulheres que tiram licença-maternidade não retorna ao mercado de trabalho após 24 meses. O IBGE também aponta que a taxa de ocupação de mulheres com filhos pequenos é de apenas 54,6%, em comparação aos 89,2% dos homens na mesma situação. Ou seja, a maternidade é uma variável que prejudica diretamente a presença feminina no mercado de trabalho.
Mas a hostilidade não se resume às decisões de contratação e demissão. As mulheres que optam por continuar suas carreiras após a maternidade frequentemente enfrentam um ambiente de trabalho que não facilita sua conciliação entre vida profissional e familiar. Além disso, essas mães carregam um peso extra: a culpa, enraizada em um sistema patriarcal e machista que as faz sentir responsáveis por não conseguir equilibrar tudo perfeitamente. A pressão para que as mulheres se sacrifiquem silenciosamente, sem reclamar, permeia todas as camadas do mercado, e as culpas e desgastes diários que enfrentam são frequentemente tão sutis que não podem ser nomeados como assédio moral. Estão ali, silenciosos, mas presentes – e a culpa vem justamente dessa impossibilidade de nomear e de confrontar a situação diretamente.
Esses desgastes não aparecem nos manuais de boas práticas, mas afetam profundamente a saúde emocional das mães trabalhadoras. A cobrança implícita é que elas devam ser "guerreiras", suportando tudo com resiliência heroica, mesmo quando essa exigência vem acompanhada de um fardo insuportável. A própria cultura reforça essa narrativa: diz-se que “guerreiros são meninos”, como aponta uma conhecida canção popular, mas as mulheres que enfrentam jornadas triplas e aguentam pressões infinitas não são vistas como heroínas, apenas como cumprindo uma função natural. Esse manto de guerreira, imposto às mães, na verdade camufla a enorme desigualdade que ainda existe no mercado de trabalho e dentro dos próprios lares.

O problema se agrava ainda mais em tempos de home office, que para muitas mães deveria significar flexibilidade, mas na prática transforma-se em mais uma armadilha. O trabalho remoto não as protege da sobrecarga: ao contrário, muitas vezes dilui ainda mais os limites entre a vida pessoal e profissional. No home office, mães se veem respondendo e-mails enquanto cuidam dos filhos, participando de reuniões com uma criança no colo ou dividindo a atenção entre relatórios e a tarefa escolar. Esse cenário aumenta ainda mais a sensação de culpa por não conseguir desempenhar todos os papéis com perfeição, e a cobrança interna e externa se torna ainda mais intensa. As dificuldades vividas nesse modelo são invisíveis para empregadores e colegas, que muitas vezes não reconhecem o esforço adicional que as mães enfrentam ao trabalhar de casa.
A pressão para continuar sendo produtiva, mesmo com o peso da maternidade, é sentida por todas as mulheres, mas as mães são particularmente afetadas por essa cobrança que se intensifica nos ambientes corporativos. A hostilidade nem sempre é expressa diretamente, mas está lá, silenciosa e constante. Isso cria um mal-estar generalizado entre as mulheres no mercado de trabalho, levando muitas a sacrificar tempo de qualidade com seus filhos para evitar o estigma de serem vistas como menos comprometidas.
O setor de jornalismo, por exemplo, é uma área onde essas dinâmicas são particularmente intensas. Embora as mulheres sejam a maioria na profissão (64% dos jornalistas, segundo o estudo da UFSC), elas ocupam apenas 37% dos cargos de chefia. As jornalistas mães, que precisam equilibrar plantões, coberturas de última hora e a responsabilidade de cuidar dos filhos, muitas vezes enfrentam um dilema constante entre priorizar a carreira ou a família. E essa escolha frequentemente resulta em afastamento das funções mais prestigiadas ou até mesmo da profissão.
O mercado de trabalho, em muitos casos, força essas mulheres a fazerem sacrifícios invisíveis. Elas abrem mão de momentos essenciais de cuidado com seus filhos para se manterem competitivas, enquanto outras desistem de progredir na carreira para não sobrecarregar colegas ou prejudicar a imagem de "profissional dedicada". O mal-estar é palpável, pois a sociedade, embora celebre a mulher trabalhadora, ainda não criou uma estrutura que realmente apoie as mães. As que tentam equilibrar as duas responsabilidades acabam sendo criticadas por todos os lados.

Bolsonaro, com sua retórica insensível, jogou luz sobre um problema estrutural que é muito mais amplo do que suas palavras grosseiras. A maternidade ainda é vista como uma complicação no mercado de trabalho, e isso não se limita a setores conservadores ou ultraliberais. Mesmo os empregadores que se consideram progressistas, que promovem políticas de equidade de gênero e diversidade, sentem o impacto de ter uma funcionária que tira licença-maternidade e, ao retornar, precisa de flexibilidade. E, dentro desse ambiente corporativo, muitas vezes são as próprias mulheres que, pressionadas pelas exigências do mercado, acabam reproduzindo comportamentos de discriminação contra suas colegas mães.
Sim, Bolsonaro tinha razão ao expor a realidade que muitos preferem ignorar. O problema é que, ao invés de apontar soluções, ele escolheu reforçar uma visão retrógrada que culpabiliza as mulheres por sua condição. O mercado de trabalho, progressista ou não, ainda precisa se adaptar à realidade das mães. E, até que isso aconteça, a hostilidade e o sacrifício silencioso continuarão a fazer parte da rotina de milhões de mulheres.
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