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A voz da minha mãe, a história do meu avô

“Cada um guarda mais o seu segredo”, canta Belchior em Hora do Almoço, e eu penso nessa frase toda vez que dou play nos áudios da minha mãe. Nas últimas semanas, tenho passado a hora do almoço em absoluto silêncio, ouvindo sua voz. Não é exatamente uma conversa. São áudios que ela me envia pelo WhatsApp, baixinho, como quem fala com o escuro. Às vezes hesita, repete palavras, se emociona. Grava quando ninguém está por perto. Quando o mundo dorme.

É para isso que estou transcrevendo esses áudios: para recuperar a memória de Pedro Albuquerque, meu avô. Funcionário da Panair do Brasil, ele foi demitido por perseguição política quando a empresa foi brutalmente fechada pela ditadura militar. O nome dele nunca apareceu em listas oficiais. Sua luta não virou manchete, nem virou mártir. Mas ele existiu — e foi calado. Com a ajuda da Comissão da Anistia, buscamos agora que seu nome seja reconhecido entre os tantos que foram apagados. E quem pode contar isso com verdade é a minha mãe.

Minha mãe, filha e neta de comunistas, cresceu sob vigilância, repressão e vergonha. Sua história atravessa a ditadura militar não como uma nota de rodapé, mas como um corpo inteiro submetido à violência do Estado. E é através dela que tento recuperar a memória do meu avô, silenciado em vida. Intelectual, dedicado à luta política, foi expulso do seu ofício e impedido de prover a família. Ficou doente, abatido. Teve sua existência deletada e álbuns de família rasgado. O que restou dele foi o esforço sobre-humano da minha avó, que passou a trabalhar em três expedientes para manter a casa, e os relatos fragmentados que minha mãe grava agora, aos poucos, tentando reconstruir os cacos daquilo que foi.

Organizar os relatos é uma tarefa afetiva, política e jornalística. Cada palavra transcrita é um ato de escuta, uma tentativa de costurar a memória familiar ao tecido da memória nacional. Porque o que minha mãe conta não é só dela. É também de outras milhares de mulheres que criaram seus filhos entre o medo e a esperança, tentando protegê-los do mundo lá fora — e, muitas vezes, do silêncio dentro de casa.

Ela cresceu vendo seus irmãos serem presos, torturados, exilados. Viu a casa ser invadida repetidas vezes pela polícia, sempre no escuro da noite. Carregou no corpo a vergonha de ser filha de comunistas, o estigma social, o isolamento na escola, o medo constante de dizer o que pensava. E, mesmo assim, enfrentou uma diretora crente que falava contra o comunismo em sala de aula, escreveu redações de protesto, se engajou no Movimento Feminino pela Anistia ao lado da minha avó — uma mulher valente, que dizia alto: “Meus filhos não são criminosos. Eu tenho o ideal deles.”

Transcrever esses áudios é reencontrar minha mãe em sua juventude. É olhar para ela não apenas como a mulher que me criou, mas como a menina que carregava o peso de uma casa vigiada, de irmãos ausentes, de um pai quebrado pela ditadura. E é, também, reencontrar meu próprio caminho. Perceber que o jornalismo que escolhi fazer, a maternidade que tento exercer, a escrita que me atravessa — tudo isso nasce dessa herança de luta e silêncio rompido.

Se hoje escrevo esse artigo, é porque acredito que dar forma escrita à fala da minha mãe é mais do que registrar uma memória. É devolver à história um pedaço que foi arrancado. É insistir que um trabalhador, uma mulher, uma criança, uma família inteira não podem ser apagados sem deixar rastro.

Se meu filho Luiz Inácio crescerá ouvindo essas histórias como quem escuta lendas de gigantes, é porque decidimos não esquecer. Porque uma filha ouviu a mãe, digitou com cuidado, e disse: “isso aqui é memória. Isso aqui é história. Isso aqui é Brasil.”

Segue um dos trechos que mais me tocou:

“Havia um silêncio forçado em casa. Nossos irmãos mais velhos estavam sempre fora — presos, escondidos ou militando. Eu mesma não tenho nenhuma lembrança de convívio com o Pedro dentro de casa. Lembro dele só quando voltou do Araguaia, depois que fui morar com ele. O Mário também era uma figura ausente. Lembro que ele dormia no corredor da casa, numa cama de madeira. Nossa casa era grande, mas mal dividida. Eu dormia em rede, na copa ou na cozinha. Só tenho lembranças da convivência com o Célio, o Wilson e minhas irmãs.

A repressão era constante, silenciosa e doída. E mesmo depois das invasões, o que ficava era a ressaca moral. O trauma não acabava quando os policiais iam embora. Ficava dentro da gente. No dia seguinte, não tínhamos coragem de ir pra escola. Quando íamos, víamos os cochichos, os olhares atravessados. Eu sofria muito com aquilo. Tinha vontade de gritar: "Meu irmão não é o que vocês pensam. Minha irmã luta por um Brasil melhor." Mas a gente calava. Sofria em silêncio”


 
 
 

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