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A realidade hackeada

Atualizado: 23 de mai.

A disputa pela informação nunca foi apenas sobre verdades ou mentiras. É sobre quem molda a percepção da realidade, quem domina os afetos e comanda a consciência coletiva. Em vez de sermos informados, estamos sendo programados


Você provavelmente não sabe quem é Virgínia Fonseca, e tudo bem. Eu também não sei. O ponto aqui não é ela, mas o que sua participação na CPI das Bets escancarou: a verdade não importa mais. O que importa é a versão que circula, como ela é embalada e de que forma o público a consome. A influenciadora com milhões de seguidores, que tirou selfies durante o depoimento e usou um moletom com o rosto da filha, virou símbolo de um fenômeno mais profundo e perigoso: a completa dissolução da verdade como valor coletivo. A audiência da CPI explodiu e o que seria seu conteúdo virou espetáculo. É sobre isso que trata este texto: um mundo onde a realidade foi hackeada.


A informação nunca foi neutra

A ilusão da neutralidade da informação é uma dos grandes diversionismos da modernidade. O que se comunica nunca foi apenas uma questão de fatos. A informação sempre carregou em si um projeto: de dominação, de obediência, de vigilância ou de alinhamento. Nas mãos do poder, a informação não circula, ela comanda. Serve para legitimar conquistas, ocultar crimes, fabricar consensos e naturalizar desigualdades.

Para Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano, a verdade na sociedade contemporânea não é mais construída por meio de um processo dialético de confronto entre posições, mas dissolvida na transparência excessiva e na aceleração informacional. Vivemos em uma era em que a verdade perde seu caráter sólido e vertical, sendo substituída por dados, opiniões e reações instantâneas. Na lógica neoliberal da comunicação digital, o verdadeiro cede lugar ao verossímil, ao viral, ao que engaja. Para Chul Ha, a verdade exige silêncio, intervalo e profundidade: três elementos cada vez mais ausentes em um mundo saturado por estímulos e pela compulsão da exposição. Nesse cenário, a verdade não desaparece de forma explícita. Ela é tornada irrelevante.

Durante séculos, o monopólio da palavra escrita pertenceu às elites letradas e religiosas. A própria invenção da imprensa, frequentemente romantizada como revolução do conhecimento, foi desde cedo apropriada por monarquias, igrejas e, depois, pelo capital industrial para difundir ideologias que garantissem sua permanência no topo da estrutura social. A Revolução Francesa só se tornou possível porque as ideias circularam. O mesmo vale para a ascensão do nazismo. O poder da informação nunca esteve na sua existência, mas no seu controle.

No século XX, a consolidação dos meios de massa transformou jornais, rádios e televisões em instrumentos centrais das guerras ideológicas do pós-guerra. Do macartismo à propaganda da Guerra Fria, o conteúdo informacional foi arma, escudo e mercadoria. A televisão não mostrava o mundo. Ela fabricava o mundo que deveria ser desejado. 

Com o tempo, o jornalismo passou a flertar com uma suposta objetividade técnica, muitas vezes se colocando como mediador neutro de realidades forjadas, quando, na prática, reproduzia a lógica da ordem dominante. Poucos perceberam que, ao abdicar da crítica à estrutura da informação, também se abdicava da própria ideia de emancipação.

Agora, no século XXI, o que está em jogo é mais profundo. Não se trata apenas de manipular o que as pessoas pensam, mas de moldar como elas pensam. A informação deixou de ser uma ferramenta de mediação e passou a ser uma tecnologia de modulação comportamental. Já não se disputa somente a narrativa dos fatos. Disputa-se o próprio processo de construção da consciência. E diante disso, todo jornalismo que não compreende essa virada histórica segue escrevendo em areia.



Do império da imprensa ao império dos algoritmos

A informação deixou de ser apenas um conteúdo a ser transmitido e passou a ser a própria arquitetura invisível do mundo digital. No século passado, quem dominava as rotativas, os microfones e as antenas, ditava o ritmo da história. Hoje, são os códigos, os servidores e os algoritmos que determinam o que existe publicamente. A lógica editorial foi substituída por arquiteturas computacionais que modulam a atenção, o comportamento e o desejo. A imprensa perdeu o monopólio da emissão, mas o poder da informação não desapareceu. Ele foi transferido e concentrado em novas mãos. E essas mãos não pertencem mais ao jornalismo.

O Vale do Silício, ao contrário da mitologia que construiu para si, nunca foi apenas um polo de inovação. Desde sua origem, foi também um braço técnico do poder militar, financeiro e imperial dos Estados Unidos. As principais empresas que hoje comandam a infraestrutura da informação nasceram ou se expandiram sob contratos diretos com o governo, especialmente com o complexo industrial-militar e as agências de inteligência. O que parecia revolução digital era, em muitos casos, uma reorganização das formas de comando global sob nova roupagem. O que se apresentou como plataforma era, de fato, plataforma de poder.

Com o domínio sobre as rotas da informação e os fluxos de dados, essas corporações passaram a operar em escala planetária. Seus algoritmos não apenas sugerem conteúdos. Eles organizam o tempo, medem o valor dos afetos, ranqueiam relevâncias e esvaziam nuances. Não há neutralidade nisso. Há intenção, arquitetura, controle. A guerra informacional do século XXI se estrutura sobre essas bases técnicas, invisíveis à maioria da população, mas profundamente eficazes na modulação cognitiva e afetiva dos sujeitos.

Os estímulos são contínuos, dinâmicos e personalizados. O feed não apenas informa, ele condiciona. O clique não apenas expressa opinião, ele é retroalimentado por sistemas que aprendem com a resposta para prever e induzir o comportamento seguinte. Trata-se de um processo contínuo de aprendizado automático, no qual a cognição humana é tratada como variável manipulável. A exposição constante a certos conteúdos, a repetição de padrões emocionais e o silenciamento gradual de vozes dissonantes constroem uma realidade artificial, mas eficaz, que atua diretamente no núcleo da formação do pensamento crítico.

O projeto político desse sistema é claro, ainda que muitas vezes negado: a construção de uma sociedade hiperindividualizada, polarizada, emocionalmente volátil e cognitivamente manipulável. Um mundo tecnofascista não precisa de tanques nas ruas, mas de plataformas que façam os sujeitos desejarem sua própria subjugação. Quem domina os meios de circulação informacional hoje não apenas conta histórias. Redesenha a arquitetura da percepção e reconfigura a própria possibilidade de consciência coletiva.



A ilusão da abundância e o colapso da consciência coletiva

A promessa do século XXI era clara: mais informação significaria mais liberdade, mais autonomia, mais democracia. A realidade, no entanto, foi outra. A abundância informacional não gerou clareza. Produziu confusão. A enxurrada diária de estímulos, dados e narrativas não ampliou a consciência coletiva. Desintegrou-a. Em vez de promover um espaço comum de debate, a superexposição de conteúdos dissolveu o senso de comunidade, dispersou os vínculos sociais e corroeu as estruturas mínimas de confiabilidade entre sujeitos e instituições. O ritmo e a natureza desses fluxos informacionais inviabilizam um processo hermenêutico completo, no qual o sujeito possa de fato elaborar, interpretar e atribuir sentido ao que lhe foi comunicado. Sem tempo para compreender, o indivíduo apenas reage. A consciência não se forma plenamente, e a percepção da realidade passa a ser organizada por atalhos cognitivos, afetos induzidos e padrões modulados por sistemas externos. O resultado é uma população saturada de dados, mas incapacitada para decodificá-los criticamente.

O efeito disso não é apenas desinformação. É colapso psíquico e desorganização cognitiva. A exposição contínua e aleatória a conteúdos altamente emocionais fragmenta o foco atencional e sobrecarrega os sistemas de processamento da mente humana. Isso favorece a saturação sensorial e afeta diretamente os circuitos da memória operacional, fundamentais para a formação de juízo crítico e continuidade reflexiva. Em termos técnicos, o ambiente digital atual opera sob um regime de estímulos intermitentes que reforçam padrões de resposta automática, conduzindo a um modelo de comportamento reativo e impulsivo, em detrimento de posturas analíticas e deliberativas.

Na prática, a democracia é corroída não apenas por mentiras, mas por distrações. A crise não é apenas do conteúdo, mas da estrutura atencional e afetiva que sustenta a construção coletiva da realidade. A lógica algorítmica favorece o engajamento, e o engajamento é maximizado por afetos extremos: raiva, medo, ressentimento, idolatria. A polarização não é um acidente. É um subproduto esperado de sistemas desenhados para capturar e monetizar o tempo mental. Isso explica por que temas centrais para a sociedade são substituídos por escândalos fabricados, narrativas de pânico moral e espetáculos de indignação permanente. O que parece espontâneo é, em muitos casos, programado.

A imprensa, quando atua sem compreender essas dinâmicas, se torna cúmplice involuntária da desorganização geral. Ao repetir o jogo das plataformas, priorizando velocidade, viralização e conflito, ela abandona seu papel de mediação crítica e rebaixando-se à lógica do ruído. Um jornalismo que não compreende que está inserido em um campo de batalha cognitivo se torna funcional à guerra que pretende denunciar. Em vez de orientar, desorienta. Em vez de resistir, participa.

Num mundo onde todos gritam ao mesmo tempo, não há consciência possível. E sem consciência coletiva, não há projeto de emancipação. A tarefa, portanto, não é apenas combater fake news. É reconstruir as condições de inteligibilidade do real. E isso exige muito mais do que boas pautas. Exige estratégia, ciência e compreensão profunda das engrenagens invisíveis que moldam o comportamento social na era da sobrecarga informacional.

Virgínia Fonseca, aquela que você e eu não conhecemos, portanto não é causa, é consequência. Sua presença performática na CPI das Bets não foi um desvio grotesco da política institucional, mas a confirmação de sua simbiose com o espetáculo. Enquanto especialistas alertavam para os danos sociais da indústria das apostas, a transmissão virava entretenimento em seus stories, e o debate se dissolvia em métricas de engajamento. O que era para ser investigação virou algoritmo. A verdade, irrelevante. Em seu lugar, sobrou a performance, o gesto viral, a comoção vazia. A realidade, enfim, foi hackeada e, como tudo que é hackeado, passou a servir não a quem busca justiça, mas a quem domina os sistemas.



O dever histórico do jornalismo

A tarefa histórica do jornalismo no século XXI é compreender, enfrentar e desarmar as engrenagens que capturam a atenção, reconfiguram os afetos e distorcem a percepção da realidade. Isso exige uma ruptura com a ingenuidade tecnoliberal, com a crença cega na neutralidade das plataformas e com a ideia de que a simples checagem de fatos é suficiente diante de uma arquitetura de manipulação desenhada para colonizar a mente. O jornalismo progressista precisa se reinventar como força estratégica de consciência coletiva. Não há saída fora da luta informacional. É preciso entender os códigos, mapear os fluxos, romper as bolhas e construir alianças que enfrentem o poder tecnofascista com inteligência, rigor e propósito histórico. Informar hoje é resistir. E resistir só é possível com lucidez sobre o terreno em que se pisa.



 
 
 

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