Os 140 anos da Conferência de Berlim e o legado do colonialismo alemão
- Paola Jochimsen
- 18 de dez. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 21 de dez. de 2024
Enquanto o Holocausto ocupa um lugar central na memória pública alemã, o legado do colonialismo na África permanece em grande parte ignorado pela sociedade

O turbilhão de acontecimentos do Brasil não nos deixa concentrar por muitas vezes em outros temas, precisei de um tempo para dar continuidade a um dos temas que mais me deixa intrigada: o colonialismo alemão na África. Dessa vez não quis escrever nada muito formal ou acadêmico. Só queria mostrar como me sinto em morar na Alemanha. Isso significa constantemente ser abordada com questões da Segunda Guerra Mundial, holocausto, antissemitismo ou da Queda do muro de Berlim. Muitas vezes, ao abordar esses temas na Alemanha, percebo que as respostas são tão frequentemente repetidas que chegam a parecer ensaiadas, o que reflete o peso histórico e o esforço coletivo de lidar com o passado. Até mesmo as crianças sabem (mesmo que de forma mais branda) o que aconteceu durante a época dos nazistas. Nos principais canais de televisão estatais da Alemanha, como a ARD (Arbeitsgemeinschaft der öffentlich-rechtlichen Rundfunkanstalten der Bundesrepublik Deutschland, Agrupamento de Emissoras de Direito Público da Alemanha) e a ZDF (Zweites Deutsches Fernsehen, Segunda Emissora Alemã de Televisão), os crimes do período nazista são amplamente abordados em programas, documentários e debates. Essa ênfase constante reflete o compromisso em evitar que tais atrocidades se repitam. Eu entendo que o que aconteceu naquela época não pode se repetir (e vejo com temor o avanço da AfD), mas aparentemente só esse tema é importante na história nacional.
Quando me deparei com o tema do colonialismo alemão, fiquei bastante curiosa para saber mais sobre o assunto e fiquei proporcionalmente decepcionada (uma decepção meio vira-lata) em ver que uma maioria esmagadora das pessoas com quem tentei ter uma conversa minimamente interessante sobre o assunto não tinha ideia do que eu estava falando. O debate existe, mas está concentrado principalmente na esfera acadêmica, nas universidades e em espaços especializados. Fora desses círculos, ele parece quase invisível, não alcançando a sociedade como um todo. E por que a decepção? Porque ainda persiste a percepção de que os europeus, de maneira geral, são mais cultos que os outros povos.
A visão dos alemães como um povo culto tem raízes históricas e culturais profundas, ligadas às suas contribuições marcantes em áreas como filosofia, música, literatura e ciência. Pensadores como Kant, Hegel e Nietzsche, compositores como Beethoven e Bach, e escritores como Goethe, Schiller e Mann ajudaram a consolidar essa reputação. A Alemanha sempre manteve uma forte tradição acadêmica, com universidades que influenciaram o mundo e um modelo educacional que valoriza o pensamento crítico e a pesquisa. Após a Segunda Guerra Mundial, o país reforçou ainda mais essa imagem ao investir em cultura, educação e memória histórica como pilares de reconstrução moral e social. Ainda assim, essa visão é um estereótipo que simplifica a complexidade de qualquer sociedade, ignorando suas desigualdades e desafios internos. No imaginário global, a Alemanha segue sendo a “terra de filósofos e poetas”. Mas, na vida real, ninguém acorda ao som de Bach no café da manhã, almoça embalado por Mozart ou termina o dia com Wagner no jantar. O cotidiano aqui é tão comum quanto em qualquer outro lugar.
Em relação à questão colonial, quando tive algum retorno, ouvi desculpas como: “não conseguimos ver nem todo o conteúdo escolar, imagina acrescentar mais um tema” ou “o reconhecimento dos erros em relação às colônias é algo recente”. Essas respostas refletem como o genocídio dos povos Herero e Nama permanece amplamente desconhecido para muitas pessoas na Alemanha, evidenciando lacunas na memória histórica e no ensino escolar do país.

O colonialismo alemão começou apenas na década de 1880, décadas após potências como Portugal, Espanha, França e Reino Unido já terem consolidado vastos impérios coloniais. Isso ocorreu principalmente porque a Alemanha, antes de 1871, era composta por diversos Estados fragmentados, sem um governo centralizado capaz de se envolver em projetos expansionistas de grande escala. Após a unificação sob a liderança de Otto von Bismarck, o foco inicial do novo Império Alemão foi a consolidação interna e a política europeia, deixando a expansão ultramarina em segundo plano. Somente com a Conferência de Berlim (1884-1885), organizada por Bismarck, a Alemanha entrou na corrida colonial, adquirindo colônias na África, como Togo, Camarões, Namíbia e Tanzânia. No entanto, a natureza breve e fragmentada desse esforço, combinado com a derrota na Primeira Guerra Mundial, resultou na perda de todas as colônias em 1919, tornando o colonialismo alemão um capítulo curto, mas marcado por violências extremas e genocídios, como o dos povos Herero e Nama na Namíbia.
A história que ninguém quer (re)lembrar
A ideia de que as atrocidades cometidas nas colônias africanas são “menores” ou menos importantes do que outros acontecimentos históricos, como o Holocausto, é fruto de séculos de racismo, apagamento e eurocentrismo. Durante o período colonial, populações inteiras foram dizimadas, submetidas a trabalhos forçados, escravizadas e violentadas física e culturalmente. Povos como os Herero e Nama foram perseguidos e levados para campos de concentração, onde morreram de fome, doenças ou em condições exaustivas de trabalho. Além disso, prisioneiros eram frequentemente submetidos a experimentos médicos desumanos, realizados para validar as teorias racistas da época.
Essas práticas e ideologias raciais, desenvolvidas durante o colonialismo, serviram como um laboratório para o que viria a acontecer na Segunda Guerra Mundial. Campos de concentração, experimentos médicos e a categorização hierárquica de raças, usados contra populações africanas, mais tarde seriam sistematizados pelo regime nazista. A repressão militar brutal, os massacres e a destruição de comunidades inteiras no período colonial ecoaram nas táticas de guerra empregadas pelos nazistas na Europa ocupada. Enquanto diziam estar “levando progresso” à África, os colonizadores escondiam ou minimizavam massacres, experimentos médicos, o tráfico humano e o genocídio que cometeram para explorar riquezas e controlar territórios
O problema é que esse apagamento ficou impregnado na maneira como aprendemos história. Crimes coloniais, como o genocídio dos Herero e Nama na Namíbia, em que mais de 80% da população Herero foi exterminada entre 1904 e 1908, só foram reconhecidos oficialmente pela Alemanha em 2021. Isso mesmo: mais de um século depois! Por outro lado, o Holocausto, um evento igualmente horrendo, é amplamente documentado e ensinado, com julgamentos e reparações já realizados. A memória do Holocausto, por sua proximidade geográfica e impacto direto na Europa, tornou-se um pilar central da história contemporânea alemã. Em contraste, as atrocidades cometidas durante o colonialismo na África ainda carecem de reconhecimento público na mesma escala, refletindo o eurocentrismo e as desigualdades históricas.

Enquanto o Holocausto conta com memoriais, museus e uma ampla presença em currículos escolares, o colonialismo alemão ainda não possui o mesmo espaço. Há iniciativas pontuais, como exposições temporárias e debates promovidos por museus de história ou etnologia, mas falta um museu nacional dedicado ao tema, que coloque a violência colonial no centro da narrativa histórica. Um exemplo recente de iniciativa para lidar com o legado colonial é o memorial ‘EarthNest’, inaugurado em 15 de novembro de 2024, em Berlim. Apresentado como um símbolo de resistência decolonial e espaço para reflexão, ele busca homenagear os povos e territórios afetados pelo colonialismo. No entanto, ações como essa, apesar de importantes, ainda são insuficientes para enfrentar de maneira abrangente o apagamento histórico e as consequências desse passado.
As ideias racistas desenvolvidas para justificar o colonialismo alemão não apenas sustentaram a violência da época, mas também deixaram marcas que ainda hoje influenciam as desigualdades sociais e algumas práticas discriminatórias na Alemanha contemporânea. Durante a colonização, os povos africanos foram desumanizados, tratados como “inferiores”. Isso fez com que suas histórias fossem apagadas ou contadas como “detalhes menores” na narrativa de progresso europeu. Além disso, reconhecer essas atrocidades hoje significaria abrir precedentes para reparações financeiras e políticas – algo que muitas potências coloniais ainda relutam em fazer.
Reconhecer o legado colonial alemão hoje exige mais do que pedidos de desculpas formais. É necessário um compromisso contínuo com reparações financeiras, educacionais e políticas, abordando não apenas os genocídios específicos, mas também a destruição cultural e econômica que marcou todas as ex-colônias. Garantir que essa memória seja incorporada ao discurso público e escolar é essencial – um processo complexo, mas necessário.
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