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A Coragem de Gisèle Pelicot: entre a violência de gênero e a banalidade do mal

A violência de gênero é uma das expressões mais brutais do machismo e da desigualdade que atravessam sociedades em todo o mundo. No entanto, algumas histórias, por sua profundidade e impacto, nos obrigam a confrontar verdades difíceis sobre a nossa humanidade. A história de Gisèle Pelicot, uma mulher francesa de 72 anos, é uma dessas histórias.

Fonte: Le Monde Foto: Christophe Simon / AFP

O caso só foi descoberto quando Dominique Pelicot foi flagrado por um segurança filmando por debaixo das saias de algumas mulheres. O que emergiu disso foi um dos piores crimes sexuais que se tem notícia. Por mais de uma década, Gisèle foi drogada e estuprada por dezenas de homens, em um esquema meticulosamente planejado e gravado por seu agora ex-marido, Dominique. No decorrer das investigações ainda foram descobertas fotos nuas tiradas sem o conhecimento da filha do casal Carolina Darian e das noras Celine e Aurore. O caso não é apenas chocante pelos números ou pelos detalhes grotescos revelados ao longo do julgamento iniciado em 2 de setembro de 2024. Ele se destaca também porque revela o quanto a indiferença, a desumanização e a cumplicidade coletiva podem transformar não só uma vida, mas várias em ruínas. 

Diante da tragédia, Gisèle escolheu não se silenciar. Recusando o anonimato garantido pela lei francesa, ela decidiu mostrar o rosto não apenas para a comuna de Mazan, na idílica região da Provença, como para todo o mundo. Essa mulher que teve não só a vida como a família destruída resolveu participar ativamente do julgamento e enfrentar seus agressores olho no olho. Essa decisão não apaga as feridas irreparáveis que ela sofreu, mas a posiciona como uma mulher de uma coragem extraordinária, disposta a desafiar tanto seus abusadores quanto a lógica social que tenta silenciar vítimas como ela.


A desumanização de Gisèle: a banalidade do mal em ação

O caso de Gisèle é uma manifestação concreta do conceito de banalidade do mal, formulado pela filósofa Hannah Arendt. Ao estudar o julgamento de Adolf Eichmann, um dos arquitetos do Holocausto, Arendt observou que os piores crimes não são necessariamente cometidos por monstros sádicos, mas por pessoas comuns que aceitam ordens ou se conformam com as normas sem questionar sua moralidade.

A banalidade do mal se manifestou de várias formas. Dominique, o ex-marido, utilizou sua posição de confiança para transformá-la em um objeto. Recrutou pela internet pelo menos 80 homens, com idades que variam entre 26 e 74 anos a participaram da violência sexual contra Gisèle. Estes homens jamais se questionarem sobre a moralidade de seus atos. Em pleno século XXI permaneceu a ideia de que “já que ela não disse nada, é porque ela concordou”. Dos indiciados, infelizmente nem todos foram identificados, muitos justificaram sua participação com base na palavra de Dominique, que lhes dizia que aquilo era consensual, mesmo com uma mulher visivelmente desacordada. Alguns chegaram a retornar a casa dos Pelicot e repetir a agressão. Estes homens não refletiram, não hesitaram, não se questionaram e, não recuaram diante do corpo inerte de Gisèle. 

As alegações apresentadas no tribunal — “estupro acidental”, “irresponsável”, “involuntário” — apenas reforçam a lógica dessa banalidade. Tudo está devidamente gravado. No entanto impressiona o fato dos acusados reconhecerem a materialidade dos fatos, mas negarem a intenção de estuprar. São tentativas de diluir a gravidade dos atos, como se a ausência de intenção consciente pudesse justificar o abuso de uma mulher desacordada. Essa racionalização revela a profundidade do problema: quando a empatia é suprimida e o outro é tratado como um objeto, o mal se torna rotineiro, quase invisível.


A violência de gênero no Brasil: reflexo de uma estrutura global

Embora a história de Gisele seja única em sua brutalidade, ela ecoa em contextos globais, como no Brasil, onde a violência de gênero atinge proporções epidêmicas. Casos como o de Mari Ferrer, que enfrentou humilhações públicas durante o julgamento de seu agressor, e o estupro coletivo no Rio de Janeiro em 2016, no qual 33 homens violaram uma adolescente de 16 anos, revelam o mesmo padrão de desumanização e banalização. Muitas mulheres brasileiras enfrentam não apenas a violência de seus agressores, mas também a indiferença de uma sociedade que frequentemente culpabiliza as vítimas e ignora a magnitude do problema.

Os dados do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública são alarmantes. No Brasil, a cada 6 minutos ocorre um crime de estupro, só em 2023 foram registrados 83.988 casos o que ocasionou um aumento de 6,5 % em relação ao ano de 2022. Na grande maioria dos casos, as vítimas menores de 14 anos. No entanto, muitos casos nunca chegam quer a ser denunciados, seja pelo medo de retaliações, pela vergonha ou pela descrença no sistema jurídico. Infelizmente, a maioria desses agressores se encontram dentro de casa, assim como Gisèle. Essa lógica de violência e indiferença não está confinada a um país ou cultura. Ela se manifesta de formas semelhantes em diferentes contextos e níveis de poder, como mostram os casos de figuras públicas como Jeffrey Epstein, Harvey Weinstein e P. Diddy.


O abuso de poder: Epstein, Weinstein e P. Diddy

Fonte: American Progress Foto: Erik McGregor - Getty/Pacific Press

Se o caso de Gisèle expõe a desumanização que ocorre em contextos privados, os casos de Jeffrey Epstein, Harvey Weinstein e P. Diddy revelam como o abuso de poder perpetua a violência em esferas públicas e profissionais. Esses homens usaram sua influência, redes de facilitadores e capital financeiro e social para explorar mulheres por anos, protegidos pela indiferença de quem estava ao seu redor.

Jeffrey Epstein liderou um esquema internacional de tráfico sexual, envolvendo menores de idade, enquanto usava suas conexões com políticos, empresários e celebridades para evitar investigações. O caso não apenas chocou o mundo pela magnitude do abuso, mas também revelou como sistemas de poder podem funcionar como escudos para os agressores.

De forma semelhante, Harvey Weinstein, durante décadas, abusou de mulheres na indústria cinematográfica, usando contratos de confidencialidade e ameaças para silenciar suas vítimas. Já P. Diddy, acusado recentemente de abuso sexual, violência e coerção, reflete como figuras públicas frequentemente manipulam suas posições de poder para controlar narrativas e evitar responsabilizações.

Esses casos não são apenas sobre os crimes individuais desses homens, mas sobre como sistemas sociais e culturais permitem que o mal seja normalizado, uma lógica que também permeia o caso de Gisèle. A banalidade do mal se manifesta na forma como o abuso é facilitado por estruturas que desumanizam as vítimas e protegem os agressores. O movimento #MeToo emergiu como uma resposta a essa lógica de abuso e indiferença. Iniciado como um espaço para que as mulheres compartilhassem suas histórias, o #MeToo se tornou uma força global capaz de expor não apenas agressores individuais, mas também as estruturas que sustentam a violência de gênero.

Casos como os de Weinstein e Epstein catalisaram o movimento, mas sua força reside na capacidade de dar visibilidade a histórias como a de Gisèle, que muitas vezes permanecem no silêncio. O #MeToo é uma tentativa de romper com o silêncio ao transformar a indiferença em indignação coletiva e ao exigir que as vítimas sejam ouvidas e respeitadas.


A violência que somos capazes de ignorar
As irmãs Mirabal Minerva, Patria e María Teresa conhecidas como “Las Mariposas”. Foto: Reprodução

A história de Gisèle Pelicot é um lembrete incômodo de como a violência de gênero não é apenas o resultado de indivíduos perversos, mas de um sistema patriarcal que desumaniza mulheres, as transforma em objetos e normaliza a dor que elas sofrem. Dominique e os homens que participaram dos abusos não agiram isoladamente; eles são o produto de uma lógica social que aceita, desculpa e encobre a violência contra as mulheres.

Ao enfrentar seus agressores de forma pública e corajosa, Gisèle nos obriga a refletir: como nossa sociedade legitima esses comportamentos? Que papel desempenham as normas culturais, os sistemas judiciais e os discursos cotidianos que relativizam a violência e silenciam as vítimas? E, acima de tudo, como a lógica patriarcal continua a operar no íntimo de nossas relações e nas estruturas que deveriam proteger, mas frequentemente revitimizam?

A coragem de Gisèle é uma ruptura do silêncio e da indiferença. Mas a questão que permanece é: o que estamos dispostos a fazer para que a violência de gênero deixe de ser um destino inevitável para tantas mulheres? Continuaremos aceitando explicações, justificativas e omissões que sustentam um sistema onde o mal não apenas ocorre, mas é legitimado?

Depois de fim de semana agitado na França, em meio a manifestações que antecedem o dia Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher, data para lembrar do assassinato das irmãs Mirabal, foi justamente no 25 de novembro que a promotoria pediu a pena máxima de reclusão para crimes de abuso sexual (20 anos de prisão) para o principal algoz de Gisèle. No entanto, só a partir de 20 de dezembro vamos saber qual será o veredicto final para Dominique e os mais de 50 coautores de tamanha barbaridade.  O caso de Gisèle não é apenas uma tragédia pessoal; é um reflexo de que a sociedade francesa (argentina, brasileira, colombiana, italiana…) precisa urgentemente se questionar sobre o comportamento dos homens em relação as mulheres. A mudança começa talvez com o reconhecimento de que não somos apenas espectadoras e espectadores, mas partes de uma estrutura que, enquanto não for desafiada, continuará permitindo que o mal se banalize. Merci Gisèle!



 
 
 

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