A advertência e o silêncio do térreo
- Sara Goes
- 9 de dez. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 10 de dez. de 2024

Na Varjota, bairro que se reinventa ao sabor das tendências, os dias são marcados pelo entra e sai de alencarinos que desfilam sua melhor tentativa de parecer turistas no próprio quintal. As ruas, com calçadas disputadas entre SUVs e cadeiras de botecos gourmet, formam o cenário de um polo gastronômico onde novos restaurantes abrem e fecham com a mesma frequência em que alguém muda de dieta. É um lugar onde os garçons conhecem de cor os nomes dos frequentadores da moda, e os trabalhadores que sustentam a engrenagem transitam invisíveis entre as mesas decoradas com arranjos minimalistas.
No meio dessa efervescência urbana, erguem-se os condomínios de classe média com sonhos de classe alta. Eles ostentam nomes importados, evocando referências distantes, de lugares com IDH astronômico que raramente alguém consegue localizar no mapa. Lá dentro, os elevadores reluzem, e as síndicas desfilam com uma pasta cheia de documentos, um ar de autoridade e um cronograma rigoroso de assembleias. Mas, de vez em quando, a aparência meticulosamente polida do condomínio desmorona — e é no térreo que as tensões se revelam.
Foi ali, no chão brilhante que o zelador esfrega todas as manhãs, que uma pequena crise ganhou forma. O funcionário, que conhece os moradores pelo nome e pelo ritmo do passo, recebeu uma carta. Não era um bilhete qualquer; era uma advertência disciplinar. A justificativa: fofoca. Fofoca, meus amigos, é a arma do trabalhador precarizado e um ato revolucionário numa geração que, de tão doutrinada por coachs que ganham dinheiro fingindo serem ricos, desaprendeu a ter raiva de patrão.
Nosso herói teria, afinal, comentado que nem tudo ia bem com os pagamentos — "teria", pois o ônus da prova cabe a quem acusa — e, de conversa em conversa, suas palavras acabaram chegando a ouvidos desprovidos de qualquer consciência de classe. A gestão viu nisso um problema grave, digno de reprimenda formal.
O texto da advertência foi meticulosamente elaborado, com frases que misturam juridiquês de estudantes de primeiro ano de Direito e tom paternalista. "Compromete a confiança necessária", dizia um trecho. "Pode levar à rescisão por justa causa", alertava outro. A carta era um lembrete de que o silêncio é mais valorizado do que qualquer direito percebido como ameaça.
Mas há algo particularmente cruel nesse tipo de situação. Quando o zelador questiona ou comenta o que vê, não é apenas uma opinião que está sendo reprimida; é a própria humanidade de quem ocupa a base da pirâmide. Ele não é apenas o homem que segura as chaves do prédio ou ajeita as lâmpadas do corredor; é também um trabalhador que percebe as pequenas e grandes injustiças que se acumulam no ambiente em que vive mais horas do que em sua própria casa.
Enquanto isso, os moradores seguem suas rotinas. Uns reclamam do quebra-cabeça que virou a garagem, abarrotada de carros populares tentando se acomodar em vagas apertadas; outros, em sua maioria, prestam solidariedade ao zelador, comentando sobre o flagrante assédio moral — ironicamente, claro, através da fofoca. Poucos percebem que o homem que zela pelo funcionamento do prédio agora carrega, além do rodo e da vassoura, o peso de uma advertência que busca calar até mesmo a possibilidade de um desabafo.
Na Varjota, o glamour de restaurantes com nomes exóticos contrasta com a precariedade mascarada de muitas vidas que sustentam esse sistema. E no condomínio, onde as sacadas brilham sob o sol cearense, o silêncio virou regra. Um silêncio imposto, que reflete mais sobre as prioridades e os valores daqueles que o exigem do que sobre quem, um dia, ousou questionar.
Talvez, lá no fundo, os corredores do prédio saibam que harmonia não se escreve em papéis com ameaças mal escritas. Harmonia de verdade é construída com respeito e diálogo. E isso, infelizmente, não cabe em nenhuma advertência, tampouco com uma ata que permanece em segredo.
À síndica, deixo um recado: em sua ânsia de calar um trabalhador, você acabou gerando uma prova física de assédio moral que se evidenciam em 4 eixos:
Tentativa de silenciamento: O documento menciona que o zelador teria comentado com outros condôminos sobre questões relacionadas a salários e benefícios, e isso é tratado como algo grave. Contudo, questionar condições de trabalho ou compartilhar preocupações legítimas entre colegas não deveria ser motivo de punição. Ao reprimir essa comunicação, a gestão pode estar impondo um ambiente de medo e controle, o que caracteriza assédio moral.
Ameaça velada: Há referência explícita à possibilidade de rescisão do contrato de trabalho por justa causa, caso o comportamento se repita. Essa ameaça não apenas aumenta a pressão psicológica sobre o funcionário, mas também tem o objetivo de deslegitimar qualquer tentativa de diálogo ou reivindicação, utilizando o medo como ferramenta de controle.
Desproporcionalidade na abordagem: Ao aplicar uma advertência por escrito baseada em "boatos" e "informações disseminadas", sem que haja menção a um processo investigativo ou tentativa de diálogo prévio, o condomínio está adotando uma postura autoritária e punitiva, o que agrava o impacto emocional sobre o trabalhador.
Exposição da reputação do funcionário: Ao citar que o caso foi discutido e sugerido em assembleia de condôminos, o texto sugere que a imagem do trabalhador foi exposta de forma indevida, ferindo sua dignidade e privacidade.
E pena que você não pode me mandar uma advertência, pois eu moro em um pequeno prédio na Vila União, onde sequer temos elevador, mas onde sobra dignidade e capacidade de fazer o certo.
Que beleza de texto. Que exlplendor de dignidade. Pena que você não seja moradora do prédio destas criaturas desclassificadas da condição humana para dar a elas algum.exemplo. E, ao mesmo tempo, que sorte não ter que respirar o mesmo ar dessa gentalha que só conhece a estupidez e falata de dignidade para existir.