O amor venceu, mas quem perdoa é Deus e quem deixa passar é catraca
- Sara Goes
- 12 de mar.
- 3 min de leitura
Bolsonaristas pedem anistia pelos atos de 8 de janeiro, mas a história mostra que esquecer crimes políticos fortalece a impunidade. Perdoar é divino, mas justiça é essencial

Quando Lula venceu as eleições em 2022, a esperança se aninhou na frase que se espalhou pelos sites e ruas: "O amor venceu". Com o tempo, essa frase foi transformada em deboche por aqueles que acreditam que vencer significa esquecer. Mas, como aprendemos ao longo da história, e eu particularmente de relacionamentos que custaram minha saúde, amor não é sinônimo de amnésia, tampouco anula a necessidade de justiça.
O bolsonarismo, que tanto amaldiçoou o perdão e clamou por vingança a qualquer custo, agora se veste de cordeiro e pede anistia para os atos do 8 de janeiro. O senador Cleitinho (Republicanos-MG), em uma retórica quase messiânica, tenta sensibilizar o Congresso com narrativas de sofrimento, apontando para penas supostamente desproporcionais. Querem transformar invasores e golpistas em injustiçados, como se depredar os três Poderes fosse um mero erro de percurso.
Essa cruzada pelo esquecimento não acontece ao acaso. É uma estratégia sistemática de sufocamento, onde o perdão é imposto como regra para que não haja responsabilização. Onyx Lorenzoni tatuou um versículo bíblico para transformar sua confissão de caixa 2 em um testemunho de redenção. Baby do Brasil, em sua bolha religiosa, prega o perdão incondicional até para vítimas de abuso sexual. Michelle Bolsonaro, ao pedir que olhem para ela e não para seu marido, tenta deslocar a culpa sem responder pelo legado de destruição deixado pelo ex-presidente. São diferentes faces da mesma tática: sentimentalizar, vitimizar e esvaziar qualquer possibilidade de responsabilização real.
A apropriação política do perdão não é um fenômeno novo, mas no Brasil ele adquire contornos de um ritual de purificação seletiva. Para os evangélicos neopentecostais, o batismo é o ponto de ruptura: tudo o que veio antes da conversão é apagado, e a nova identidade de fiel substitui qualquer culpa. Esse conceito, essencial no âmbito da fé, foi apropriado politicamente como um mecanismo de absolvição instantânea. Perdoar, para a extrema-direita, não é um exercício espiritual, mas um instrumento de poder para garantir impunidade.
Em 1979, a Anistia foi aprovada sob a promessa de reconciliação nacional. Mas ali o perdão não foi um direito concedido, e sim um respiro concedido sob a faca no pescoço dos exilados e presos políticos. Para voltar ao Brasil, para sair da cadeia, para reconstruir suas vidas, militantes foram obrigados a aceitar um acordo que assegurava que seus torturadores jamais responderiam pelos crimes cometidos. Foi um perdão negociado sob coerção, imposto para garantir uma transição sem rupturas. Agora, o bolsonarismo quer inverter a lógica: não quer um perdão público arrancado sob chantagem, mas sim um perdão convertido em salvo-conduto, em uma ferramenta de preservação de sua força política.
A comparação com outros momentos históricos mostra como o Brasil se coloca novamente diante de uma encruzilhada. Mas há uma diferença crucial entre o perdão que é arrancado e aquele que se exige sem qualquer custo. O Estado não pode se dobrar diante de criminosos e, nesse ponto, a esquerda nunca teve perdão como direito. Foi obrigada a engolir a impunidade de seus algozes e seguir adiante. Agora, diante de mais uma tentativa de apagamento dos crimes da extrema direita, cabe à democracia lembrar que, se perdoar pode ser divino, responsabilizar é indispensável.
E se há um direito historicamente negado à esquerda, ele não é o do perdão, mas o da justiça. Uma justiça limpa, institucional, como toda sociedade que preza pelo Estado de Direito deve exercer. Responsabilizar quem tentou destruir a democracia não é revanchismo: é a única maneira de garantir que o amor que venceu não seja reduzido a uma piada. O que o bolsonarismo quer, no fundo, é transformar a anistia em uma nova "carta branca" para futuros golpes. Mas a história ensina que quem deixa passar é catraca. O Estado Democrático de Direito não pode se tornar refém de quem o atacou e quem perdoa é Deus, Baby.
Comments