Bolsonaro morreu, por Sara e Rey
- Reynaldo Aragon
- 28 de abr.
- 6 min de leitura
Bolsonaro morreu e virou mártir de si mesmo: apodrece ao vivo para viralizar sua dor. A doença virou espetáculo. A gastura, estratégia. Por Sara Goes. Publicado originalmente no Brasil 247.

Bolsonaro morreu. Ele agora é um corpo-espetáculo. Internado, entubado, costurado por câmeras, tubos e bisturis, ele não apenas assina uma intimação do Supremo Tribunal Federal: ele performa. Muniz Sodré nos lembra que o grotesco não é apenas o feio: é o que rompe, deforma e fascina. É aquilo que, ao exibir o repulsivo, captura o olhar. E Bolsonaro sabe disso. Seu corpo, inflamado e exibido, torna-se mídia e mensagem.
É preciso entender essa operação como parte de um dispositivo maior. O bolsonarismo, como construção simbólica, funda-se numa estética da excrescência, numa comunicação que seduz pela abjeção. A cena do leito de hospital não é exceção, é um método. Como nos ensina Umberto Eco, o grotesco é aquilo que, ao mesmo tempo, repugna e fascina. Ele rompe com a forma clássica da beleza para criar novos critérios de percepção. Bolsonaro entende isso intuitivamente. Por isso, engana-se quem acha que Bolsonaro busca empatia do país. O que ele busca é fidelização. Seu corpo, cheio de pus e arrotos, é um altar escatológico, onde a dor não é silenciada, ela é amplificada.

Mas essa manipulação do corpo como signo de sofrimento não nasce agora. Alexandre Barbalho, em seus estudos sobre a construção do imaginário nordestino, analisa como os corpos fragilizados pela seca de 1877 no Ceará foram instrumentalizados como ícones de um Nordeste miserável, dependente, permanentemente carente de salvação externa. Aqueles corpos magros, famintos, despidos, tornaram-se símbolos de um território estigmatizado. Bolsonaro, ciente ou não, repete essa estratégia: faz de seu corpo adoecido um campo de batalha simbólico, uma vitrine daquilo que diz ser vítima, do “sistema”, da “justiça”, da “mulher oficial com intimação”.
Bolsonaro morreu e se tornou um sintoma.Ele é um corpo em permanente sofrimento, cuja inflamação não busca cura, mas cliques. Ao gritar com uma oficial de justiça, mulher e agente da ordem, o ex-presidente não apenas confronta o Estado: ele encena sua abjeção diante do feminino institucional, da “garota de recados de Moraes” Seu grito é menos contra a ordem do que pela reafirmação de seu lugar grotesco na história.
Em plena guerra cultural, onde a disputa se dá no campo dos afetos e das imagens, o mártir putrefato é uma arma poderosa. Gaze, bile, flatulência: tudo vira signo, tudo é viralizável. O grotesco é estratégia, é uma sebosidade que prega, é feiura que engaja. A decomposição, aqui, não é efeito colateral, ela é uma linguagem.
Bolsonaro morreu e apodreceu. Mas ele apodrece ao vivo para que saibamos que está entre nós, sofrendo, diz ele, por nós. Não por amor, mas sim por saber que a gastura, como pode ser uma forma de poder. E que o corpo doente, tal como o da seca de 1877, ainda é arma de guerra, simbólica, política e grotescamente eficaz.

Bolsonaro morreu e o mundo, tal como o conhecíamos, também. O que vem agora é outra coisa. Uma nova ordem decrépita, povoada por monstros e doenças emocionais. Talvez Trump tenha sido aquele a desferir o golpe fatal naquilo que restava de civilidade, desmoralizando o multilateralismo e esvaziando de sentido a ONU, a OMC e a OMS. O que vamos reconstruir, ainda não sabemos. Mas já que a putrefação virou método, que a excrescência virou estética e que o seboso virou herói, que pelo menos façamos do corpo em decomposição de Bolsonaro um adubo. Que dessa lama brote enfim de novo uma vida que preste.
O mártir apodrece, o algoritmo alimenta: a guerra afetiva do grotesco de Bolsonaro
O grotesco é o afeto que organiza o gozo fascista. E não qualquer gozo. Um gozo invertido, um prazer na destruição simbólica do outro. Por Reynaldo Aragon. Publicado originalmente no Brasil 247.

Bolsonaro morreu mesmo. E se exibiu. Mas o espetáculo não termina com sua internação. Ele só se intensifica, se transmuta, se espalha em vídeo, em post, em reels, em meme. Como nos ensinou Sara Goes em sua autópsia estética do bolsonarismo, o corpo apodrecido do ex-presidente não é a antítese de seu projeto. É o próprio projeto. Um corpo que arrota, que inflama, que delira e que se nega à cura. Um corpo que fede porque é disso que se alimenta o algoritmo. Mas há algo mais nesse grotesco que pulsa e mobiliza. Há um afeto que não se contenta em repugnar. Ele fideliza sim. Ele convoca. E mais do que isso, ele forma subjetividades.
Porque o grotesco não tem o mesmo peso afetivo para todos. Para os democratas, o grotesco é alerta. É sinal de que algo está errado. É o ruído dissonante que convoca o nojo, a angústia, o impulso ético de recusa. Para a esquerda, a imagem da abjeção é uma violência a ser desvelada, denunciada, exposta como sintoma do colapso. Mas para a base fascista, esse mesmo grotesco reverbera de outra forma. Ele não convoca a recusa. Ele clama por purificação. Ele não é o desvio. É o sinal. É um afeto em estado bruto, pulsando no centro de uma cosmovisão paranoica e moralista. Para essa base, o grotesco não é aberração. É evidência de que há um inimigo e de que é preciso eliminá-lo.
É nesse ponto que o grotesco se torna não apenas linguagem, mas dispositivo de guerra. Uma guerra afetiva, travada não por argumentos, mas por sensações. Não por projetos de país, mas por gestos de aversão e desejos de extermínio. O grotesco é o afeto que organiza o gozo fascista. E não qualquer gozo. Um gozo invertido, um prazer na destruição simbólica do outro. A cada imagem que escancara corpos abjetos, seja o da travesti espancada, do indígena invisibilizado, do pobre ridicularizado, a base se nutre. Ri, compartilha, venera. A gargalhada aqui é arma. Ela transforma a dor do outro em motivo de pertencimento. Como na cena em que Bolsonaro imita uma pessoa morrendo com falta de ar durante a pandemia, zombando do desespero de milhares que agonizavam sem oxigênio nos hospitais. Ou quando ri abertamente da morte de Rubens Paiva, desaparecido na ditadura. Ou ainda quando despreza e desumaniza a memória de Bruno Pereira e Dom Phillips, assassinados na Amazônia, insinuando que “isso acontece com quem vai por ali”. Em cada um desses episódios, a dor do outro é convertida em espetáculo. A agonia vira punchline. O luto se torna palanque. E é nesse teatro do escárnio que a base se reconhece, se reafirma, se alinha. Porque o grotesco aqui não é acidente. É doutrina.

E o algoritmo, atento, recompensa. Ele não julga. Ele entrega. Ele distribui o grotesco como vício, como quem oferece pequenas doses de desprezo para manter o sujeito engajado. O grotesco é dopamina fascista. Não é por acaso que os vídeos mais vistos são os mais escatológicos. O corpo bolsonarista, putrefato, sempre retorna. Internado ou não, ele aparece em alta resolução, em câmera lenta, em looping. Porque quanto mais escárnio, mais cliques. E quanto mais cliques, mais política.
A guerra cultural não é travada no campo da razão. Ela é disputada nos subterrâneos do afeto. O grotesco é a granada estética dessa guerra. Ele invade a sensibilidade anestesiada e a violenta. Não pelo choque, mas pela adesão. A repulsa deixa de ser uma linha de recuo e vira o início da radicalização. E é aí que a política do grotesco se torna mortal. Porque ela transforma o espectador em cúmplice. Depois, em soldado. O mártir fascista apodrece, sim. Mas sua decomposição é evangelho. Cada secreção é sinal. Cada gaze, cada fístula, cada gemido se converte em argumento. Um argumento pré-racional, afetivo, irracionalista. Porque o fascismo não opera pela persuasão. Ele opera pela sensação. E o grotesco é sua estética de guerra.

O cadáver de Bolsonaro, ainda que vivo, não pede compaixão. Ele exige culto. Um culto ao sofrimento performado, à vitimização como tática, à doença como messianismo. É o corpo agonizante do líder como metáfora de um país que também sangra. Mas não para curar. Sangra para unir os que desejam vingança. E o algoritmo, silencioso, registra tudo.
Para Sara Goes, cujo olhar afiado e escrita luminosa não apenas desvelam as camadas do presente, mas também fazem da análise um gesto de coragem e beleza. Este texto se inscreve como um eco, uma dobra, talvez um sussurro intelectual na mesma frequência em que sua voz ressoa, precisa, inquieta e irremediavelmente necessária.

Comments