Por que desenterrar o passado de políticos evangélicos nos diverte mas não funciona
- Sara Goes
- 31 de out. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 7 de nov. de 2024

Nas eleições brasileiras, discutir o passado de um político que hoje se apresenta como cristão tende a ser uma estratégia ineficaz. Para o campo progressista, pode até ser delicioso relembrar os pecados, especialmente daqueles que mais se revelam hipócritas e frequentemente emitem julgamentos sobre nossas convicções, mas isso pouco afeta a percepção de seu eleitorado, que enxerga neles uma nova vida, absolvida pela fé e protegida pela lógica da redenção espiritual.

Na cultura neopentecostal, o batismo é visto como um renascimento, simbolizando o perdão e o esquecimento de tudo que ocorreu antes deste rito, não importa a gravidade. Esse ato cria um escudo moral quase impenetrável, permitindo que políticos convertidos escapem das consequências públicas de suas histórias, tornando-se praticamente invulneráveis a críticas baseadas em seus erros passados.
O maior exemplo dessa dinâmica é o caso de Jair Bolsonaro, cujo batismo no Rio Jordão simbolizou sua entrada definitiva na narrativa neopentecostal. Sob uma interpretação bíblica, alguns poderiam ver Bolsonaro como o anticristo, devido à magnitude de suas ações. No entanto, seu batismo no Jordão — mesmo em águas poluídas — serviu como uma purificação total de seu passado. A partir daquele momento, o foco de seus apoiadores evangélicos passou a ser sua "missão divina" e seu compromisso
com o discurso cristão conservador, absolvendo-o de qualquer culpa prévia à conversão. Esse batismo, realizado em 2016 pelo então presidente do PSC, Pastor Everaldo, foi um marco, embora em 2020 o próprio Everaldo tenha sido preso por envolvimento em corrupção.

Michelle Bolsonaro, antes discreta, tornou-se central na mobilização religiosa da campanha de Bolsonaro, focando em atrair mulheres evangélicas com promessas de "trazer Jesus para o governo". Embora sua trajetória seja marcada por escândalos, como os depósitos de Fabrício Queiroz e a falsificação do cartão de vacinação de sua filha durante a pandemia de covid-19, a ex-primeira dama
adota um comportamento cada vez mais histriônico em eventos religiosos, intensificando sua retórica e presença pública. Recentemente Michelle tem se afastado de Bolsonaro e se aproximado de Damares Alves, sugerindo que está traçando um caminho político próprio, com crescente influência no Partido Liberal (PL). Um exemplo paralelo é Onyx Lorenzoni, ex-ministro do governo Bolsonaro, que, em 2016, fez uma tatuagem com o versículo bíblico João 8:32 para se lembrar do caixa 2 em sua campanha.

Na política, o catolicismo carismático, assim como o neopentecostalismo, tem sido instrumentalizado pela extrema direita no Brasil. Políticos como Jair Bolsonaro encontraram nesses movimentos religiosos uma base fiel de eleitores que veem neles uma missão divina para proteger os "valores cristãos". Com o crescimento do catolicismo carismático, que hoje abrange cerca de 14.400 grupos de oração em todo o Brasil, esse "primo" do neopentecostalismo aumenta exponencialmente a capacidade de mobilização massiva e engajamento comunitário, principalmente entre as classes médias e baixas que têm preconceito com a religião evangélica.
A candidata a vice-prefeita, Alcyvania Pinheiro (PL), tem se mostrado uma aliada chave nesse jogo de poder religioso. Alcyvania, que é membro da Comunidade Católica Shalom, não apenas compartilha da mesma retórica de renovação espiritual, mas também defendeu publicamente o projeto "Bíblia nas Escolas", recentemente abraçado pelo governador Elmano de Freitas (PT). O projeto, que propõe a inclusão da Bíblia no currículo escolar das escolas públicas do Ceará, tem gerado grande debate. Para Alcyvania, a presença da "Palavra de Deus" nas escolas é essencial, destacando sua relevância cultural e histórica, embora seu apoio tenha

sido acompanhado de críticas ao Partido dos Trabalhadores, que em outras ocasiões já se posicionou contra pautas religiosas. Críticos levantam preocupações sobre a laicidade do Estado e o risco de violar a pluralidade religiosa nas escolas públicas. Claro. É como se estivéssemos, tal como os israelitas no deserto, moldando e adorando nosso próprio 'bezerro de ouro'. Cada vez que o alimentamos com nossa atenção e nossos recursos, ele se torna maior e mais poderoso, distanciando-nos daquilo que realmente importa. No fim, o monstro que criamos nos domina.
A lógica do perdão e da regeneração espiritual faz com que o eleitorado evangélico enxergue o candidato como uma pessoa renovada, redimida por sua fé. Esse é um dos motivos pelos quais André Fernandes, assim como Jair Bolsonaro, continua mantendo um apoio expressivo, mesmo após seus pecados. Enquanto as campanhas que expõem falas e atitudes controversas podem funcionar parcialmente, desgastando a imagem do político entre setores mais críticos, elas não são capazes

de “esmagar a cabeça da serpente”. Em outras palavras, não atingem a raiz do apoio evangélico, que é baseado no poder da conversão e do batismo.
O contexto eleitoral de Fortaleza, entretanto, mostra que nem todo uso da religião na política é bem aceito. Recentemente, um manifesto de pastores evangélicos repudiou o uso de templos como palanque eleitoral, em referência ao crescente uso de espaços religiosos para fins políticos. Os pastores pedem que os templos sejam respeitados como lugares de culto, e não como instrumentos de manipulação eleitoral. Esse manifesto é significativo, pois destaca que, apesar do apoio evangélico ser importante para certos candidatos, há um limite ético quando o espaço religioso se mistura excessivamente com a campanha política.
Esse dilema religioso-político tomou novos contornos após a decisão do juiz da 115ª Zona Eleitoral de Fortaleza: O magistrado suspendeu a veiculação de uma propaganda, voltada ao público evangélico, que atacava diretamente Evandro Leitão (PT) com o slogan “Quem é cristão, não vota em Leitão”. A peça acusava o PT, aquele mesmo das bíblias nas escolas, de promover drogas, prostituição, aborto e a exclusão de Deus das escolas e da sociedade. O juiz considerou o conteúdo ofensivo à honra de Leitão e à imagem do partido, uma vez que sugeria ao eleitorado que o candidato não merecia ser escolhido. A multa estabelecida foi de R$ 50 mil por cada veiculação da propaganda, imputada à campanha de André Fernandes (PL).

Podemos rir da hipocrisia dos candidatos evangélicos, que muitas vezes mostram um abismo entre suas crenças e suas ações, mas é essencial que as campanhas mudem de foco. Em vez de investir todos os esforços em relembrar o passado dos candidatos, a estratégia deve se concentrar no futuro. No caso de Fortaleza, que enfrenta problemas sérios e estruturais, se essas questões não forem tratadas com seriedade e responsabilidade, o futuro de Fortaleza pode ser verdadeiramente apocalíptico.
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