Lula mora longe mora dentro
- Sara Goes
- há 6 dias
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A migração nordestina carrega marcas profundas de injustiça histórica. Ela é muitas vezes forçada, determinada por ciclos de seca, de fome, de abandono. Ao longo do século XX, milhões de nordestinos cruzaram o país para sobreviver, empurrados pelo pau de arara, pelas promessas das grandes cidades e pelo silêncio dos governos

O véi nordestino não é um verbete etarista para se referir a um idoso. É uma entidade. Um corpo que carrega dentro de si o tempo, a terra e a travessia. Ele não representa apenas uma fase da vida, mas um estado de pertencimento que se intensifica com a idade. É quando o tempo vivido fora faz o chão de origem mais forte por dentro. Lula é hoje essa entidade. O presidente que não se rendeu, não se perdeu, não se dissolveu na cidade grande. Ele migrou, lutou, governou, mas não largou o fio. E quanto mais o tempo passa, mais o povo vê nele o retorno daquele que partiu sem sair.
A migração nordestina carrega marcas profundas de injustiça histórica. Ela é muitas vezes forçada, determinada por ciclos de seca, de fome, de abandono. Ao longo do século XX, milhões de nordestinos cruzaram o país para sobreviver, empurrados pelo pau de arara, pelas promessas das grandes cidades e pelo silêncio dos governos. Mas essa migração não apagou vínculos. Esticou um fio. E o que se observa é que, na velhice, esse fio volta a vibrar com mais força. O tempo, em vez de apagar o chão, faz ele pulsar por dentro do peito. O véi nordestino é essa corda tensionada entre o passado e o presente, entre o corpo migrante e a alma enraizada.
Minha tese é que, quanto mais o tempo passa, mais o migrante nordestino se reencontra com suas raízes. A velhice, em vez de afastar, reconecta. E esse retorno não é físico. É simbólico, afetivo, linguístico, político. O véi nordestino não volta apenas à terra, ele volta a ser terra.
É um sentimento que se vê nos gestos, na fala, na memória. Como observou Arnóbio Rocha, migrante cearense e amigo de longas conversas, “você pode sair do Ceará, mas o Ceará nunca sai de você”. No áudio que me enviou, Arnóbio diz que por mais que alguém se refine, viaje, estude, fique sofisticado, há algo que permanece irremovível: a ligação com a tribo, com o lugar de origem. “Isso é DNA”, ele repete. E fala de Lula como esse homem que, mesmo formado politicamente nas fábricas de São Paulo, carrega em cada passo, em cada palavra, a marca de Dona Lindu, da linguagem, da roça, do chão batido. Não é uma representação forçada, é vivência que resiste.
Esse é o lugar onde minha tese nasceu. Não foi de agora, nem de uma conversa específica. É uma percepção de muitos anos, de observar parentes que migraram durante a ditadura militar, de ver amigos que envelhecem longe e vão ficando, curiosamente, mais nordestinos. A velhice acentua essa pulsação. O que estava fundo emerge. E no Nordeste, não há constrangimento em dizer véi. A palavra é afeto, é respeito com intimidade, é reconhecimento sem cerimônia. É por isso que, outro dia, quando uma amiga mandou um superchat chamando Lula de velhinho com ternura, me peguei pensando no quanto esse nosso léxico trata a velhice com cuidado e orgulho. Algumas pessoas estranharam. Mas o que para alguns soa rude, para nós é vínculo. Véio é raiz, véio é identidade.
Lula tem feito questão de reafirmar esse pertencimento. Não apenas em palavras, mas em gestos, em itinerários, em presenças. Em Osasco, no fim de julho, falou com ironia sobre como os poderosos preferem seu vice, mais calmo, mais branco, mais “negociador”. “Ele não é rouco como eu, não é bravo como eu”, disse Lula, arrancando risos. E ali estava o véi nordestino, que não suaviza a voz nem disfarça o rosto. Que não cabe no molde que se espera da autoridade obediente. Lula é o véi que fala alto porque aprendeu cedo a não abaixar a cabeça. O que carrega a indignação de quem já passou fome, mas também o humor de quem sobreviveu com dignidade.
Tratar o véi nordestino como entidade é entender que ele não é só um homem, é um arquétipo. Um território afetivo. Um tambor de memória. Onde ele está, está também o sotaque, o tempero, a sabedoria popular, a história dos que vieram antes. E é por isso que, mesmo morando longe, ele mora dentro. Dentro do corpo, da fala, da política, da cultura. Dentro daquilo que pulsa como terra mesmo onde só tem concreto. E quando o povo vê Lula na televisão, de camisa arregaçada e voz rouca, não vê só um presidente. Vê um retorno. Vê o véi nordestino que saiu, resistiu e ficou.
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